A dois dias da eleição, equatorianos relembram piores momentos da pandemia

Primeira onda de Covid atingiu em cheio Guayaquil, que vê promessas de campanha com certa descrença

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Guayaquil (Equador)

O material que Greta Encalada, 52, usava para trabalhar está jogado em um canto do quintal de sua casa em Samanes, no subúrbio de Guayaquil —a maior cidade do Equador. O cenário inclui uma cama, toalhas, e aparelhos usados para fazer limpeza de pele e outros tipos de tratamento cosmético.

Desde março, porém, ela não exerce seu ofício. Primeiro, porque essa atividade está proibida devido às medidas sanitárias contra o coronavírus. Depois, porque sua vida foi marcada por uma tragédia.

Em abril de 2020, sua irmã, María Dolores, morreu aos 46 anos, quando a primeira onda da pandemia atingiu em cheio a região de Guayaquil, cidade de 2,6 milhões de habitantes que é o coração financeiro do Equador.

Além do luto e da necessidade de cuidar do sobrinho e da mãe, que tem Alzheimer, Greta também se uniu a um grupo que reúne familiares de pessoas mortas que foram enterradas às pressas e de modo precário quando os hospitais e necrotérios entraram em colapso.

Os corpos das primeiras vítimas da Covid-19 foram recolhidos das ruas, das casas e dos hospitais por uma força-tarefa que envolveu até as Forças Armadas.

“Minha irmã passou dois dias morta em casa, esperando que viessem buscar seu corpo. O serviço da prefeitura não dava conta da quantidade de gente que morreu naquelas semanas”, diz Greta à Folha, referindo-se ao período entre fevereiro e abril do ano passado.

O corpo de María Dolores foi então levado a um necrotério, mas a família não pôde mais vê-la. Apenas recebeu a informação de que, um mês depois, ela tinha sido enterrada —mas sem a localização exata.

“Há vários culpados nisso tudo. Funcionários dos necrotérios públicos cobravam U$S 400 [R$ 2.150] para que um familiar entrasse só para ver se o corpo de seu parente estava ali dentro. Depois, vieram as audiências em que uns jogavam culpa nos outros. Nos cemitérios, cuja entrada era proibida, cobravam propina para a gente entrar e dar uma olhada, para tentar saber algo, sem sucesso. Muita gente pagou, foi enganada”, afirma.

“Nós somos católicos, o que exigimos é saber onde ela está, receber o corpo e dar uma sepultura a ela. Estamos exigindo isso para completar o luto."

Embora alguns juízes tenham decidido a favor de familiares, a prefeitura de Guayaquil afirma não ter condições de atender aos pedidos neste momento, quando o país começa a enfrentar um novo aumento dos casos de coronavírus.

Greta diz que tem sido atendida por uma psicóloga, serviço oferecido pelo município aos familiares dos mortos. “Isso me ajuda muito, porque ficamos com imagens horríveis em nossa cabeça, além da tensão de saber o que aconteceu. É difícil recomeçar a vida depois disso."

No grupo de Greta, há pessoas que conviveram com corpos de familiares em casa por vários dias. “Isso é algo muito doloroso, ainda mais em famílias com filhos pequenos, que ficam traumatizados, fora o medo do contágio”, conta.

As imagens do caos que a chegada do vírus a Guayaquil causou viajaram o mundo e saíram em dezenas de publicações estrangeiras.

As cenas de corpos abandonados ou embrulhados diante das casas e de caixões sendo transportados por gruas e charretes provocou imenso impacto negativo na gestão do presidente Lenín Moreno. O governo foi acusado de ter agido tarde demais, tanto para tomar medidas de combate à pandemia quanto para administrar o colapso sanitário e funerário da maior cidade do país.

Quase um ano depois do primeiro caso, em 14 de fevereiro, as feridas da primeira onda ainda não cicatrizaram. A primeira infecção foi de uma equatoriana que vivia em Madri e veio à Guayaquil para visitar a família. O vírus foi identificado quando a mulher foi hospitalizada —13 dias depois, ela morreu.

Até hoje o número exato de mortos no Equador em decorrência da Covid-19 é contestado. Organizações de direitos humanos e associações de sobreviventes creem que foram mais de 10 mil apenas na região metropolitana de Guayaquil.

Os números oficiais não chegam nem a um terço disso, mas ao mesmo tempo se registra um aumento de 185% nas mortes na cidade nesse período. Os dados compilados pela Universidade Johns Hopkins, referência mundial no assunto, apontam que o Equador teve 253.339 casos confirmados de coronavírus até esta sexta (5), com 14.968 mortes.

Na época da primeira onda, até o presidente Moreno admitiu que havia inconsistências nos números.

“Sabemos que tanto o número de contágios como o de mortes nos registros oficiais são menores. A realidade supera a quantidade de testes que pudemos fazer e a velocidade das mortes”, disse, em entrevista a uma televisão local.

Apesar disso, o governo não vem atendendo aos pedidos para realizar uma contagem oficial dos mortos. Também não se comprometeu a identificar todos as pessoas que foram enterradas nas valas comuns abertas nos diversos cemitérios já existentes e em dois outros construídos durante a pandemia, cada um com capacidade para 12 mil mortos.

A Folha visitou dois desses espaços em Guayaquil. No Parque de la Paz, há um espaço de gramado com pequenas placas, ao lado das sepulturas regulares, onde estima-se que mais de mil pessoas tenham sido enterradas sem identificação. Próximo dali há ainda um galpão em que estão acumulados restos de caixões improvisados de papelão e de madeira.

“Os corpos chegavam de todo jeito, embrulhados, em caixas armadas na correria. Nós tirávamos dali e enterrávamos aqui atrás”, diz Edwin, 57, chefe de obras do cemitério, que está passando por uma ampliação.

Além da vala comum, há um setor novo do cemitério vertical, com gavetas com os mortos identificados. Ao olhar as datas das mortes, percebe-se um acúmulo nos últimos dias de março e no começo de abril. “Não parava de chegar caminhão com morto para enterrar”, conta.

Na época, porém, nem a imprensa nem os familiares podiam ver quantos e como eram os enterros. Mas isso ficou na mente dos moradores do bairro de Pascuales, onde fica o cemitério. Uma delas é Maritza Torres, que vive com as três filhas numa casinha diante da principal entrada de caminhões do local.

“Eles vinham em grande quantidade e por muitos dias. E derrubavam nosso sinal de internet toda vez que vinham trazer corpos, para que a gente não filmasse e enviasse fotos e vídeos. Mas o que está na minha cabeça eu não esqueço. Era caminhão atrás de caminhão, por várias semanas. Dava para ver alguns corpos à mostra e sangue escorrendo dos veículos.”

Com medo, ela e os vizinhos foram perguntar aos oficiais sobre quais cuidados estavam sendo tomados, se eles seriam orientados para não se infectar. “No dia seguinte, vieram e limparam a rua toda, a frente da nossa casa. Mas depois fomos nós que passamos a fazer um mutirão para limpar regularmente, porque estamos muito perto de onde passavam os corpos”, afirma.

Torres diz que, por conta das eleições presidenciais no domingo (7), vários candidatos estiveram no bairro, fazendo campanha. "Mas sabemos que ninguém quer mexer nisso, em saber de fato o que se passou e quem está enterrado onde. Dizem também que vão nos ajudar, nos dar dinheiro, mas as pessoas estão muito descrentes."

Ela conta que recebeu ajuda do governo no ano passado, pois perdeu o emprego numa firma de limpeza, mas que neste ano não ganhou nada ainda. "Estão analisando, dizem, mas vai ficar para o próximo governo decidir. A gente vai aguentando. O que não sei se aguento é ver de novo os mortos chegando empilhados. Quem quer que ganhe tem que resolver essa pandemia", afirma.

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