Atos ganham força em Mianmar após militares dizerem que população apoia golpe

Em 1ª entrevista coletiva desde tomada de poder, porta-voz afirma que 40 milhões são a favor dos militares; país tem 53 milhões de habitantes

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Reuters

Centenas de milhares de pessoas foram às ruas nesta quarta-feira (17) em Mianmar protestar mais uma vez contra o golpe militar, rejeitando a afirmação do Exército de que a população apoiou a derrubada do governo civil liderado por Aung San Suu Kyi.

A maioria das manifestações, entre as maiores desde que os protestos começaram em 6 de fevereiro, foi pacífica. Ainda assim, forças de segurança realizaram disparos na cidade de Mandalay, a 270 km da capital, Naypyitaw, onde dezenas de milhares foram as ruas.

Manifestantes protestam contra golpe militar em Rangoon, maior cidade de Mianmar
Manifestantes protestam contra golpe militar em Rangoon, maior cidade de Mianmar - Reuters

Militares entraram em confronto com grevistas do setor de trens, segundo relatos de moradores. Há vídeos de soldados atirando pedras e usando catapultas. Um voluntário local foi atingido na perna pelo que parece ter sido uma bala de borracha.

O Exército e a polícia não comentaram o incidente, mas a página do Facebook das Forças Armadas afirmou que estavam fornecendo segurança em todo país para “garantir o sono tranquilo das pessoas”.

Milhares marcharam também na capital e centenas na cidade de Mawlamyine, no sul do país. Houve confrontos nos dois locais na semana passada.

Os opositores ao golpe de Estado, realizado em 1º de fevereiro, estão extremamente céticos com relação às promessas da junta militar, de que haverá uma eleição justa e transferência de poder. Ao mesmo tempo, porém, Suu Kyi recebeu mais uma acusação, desta vez por uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus.

“Amamos democracia e odiamos a junta”, disse Sithu Maung, político da Liga Nacional pela Democracia (LND), partido de Suu Kyi, a dezenas de milhares de pessoas reunidas no centro de Rangoon, maior cidade do país. “Precisamos ser a última geração a vivenciar um golpe.”

Também em Rangoon, motoristas aderiram à “campanha do carro quebrado”, que se espalhou pelas redes sociais. Eles pararam seus carros, com capôs levantados, em ruas e pontes para bloquear a passagem de veículos militares.

A principal demanda dos protestos diários que se espalharam nas principais cidades do país, ainda que em menor número depois que o Exército enviou tropas para reprimi-los, é o fim do regime e a libertação dos mais de 400 presos políticos, em especial Suu Kyi, ganhadora do Nobel da Paz.

Em entrevista coletiva nesta terça (16), a primeira desde a derrubada do governo civil, o general Zaw Min Tun, porta-voz do conselho de militares que agora chefia o país, negou que a líder civil e o presidente mianmarense Win Myint, detidos em 1º de fevereiro, estejam encarcerados. Min Tun disse ainda que ambos estão em suas casas para sua própria segurança enquanto "a lei segue seu curso".

Além da promessa de eleições, o porta-voz também afirmou que 40 milhões de mianmarenses, entre uma população de 53 milhões, apoiavam o golpe. A declaração foi o principal estopim para os protestos desta quarta.

Em Rangoon, Sithu Maung fez rechaçou a afirmação e disse que “estamos mostrando aqui que não estamos nesses 40 milhões”.

Os atos de protesto incluem ainda uma ampla campanha de desobediência civil que começou entre os profissionais de saúde e se espalhou entre diversas outras categorias, como professores, universitários e funcionários remanescentes do governo deposto.

A agitação nas ruas reviveu as memórias sobre o violento histórico de reações a protestos em Mianmar. Na revolta de 1988, mais de 3.000 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança do país durante atos contra o regime militar —o país viveu sob uma ditadura de 1962 a 2011.

Embora a violência tenha sido limitada dessa vez, as forças de segurança do país têm utilizado balas de borracha, canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo para dispersar os atos.

Na semana passada, uma mulher foi baleada na cabeça em Naypyitaw durante o que testemunhas apontaram como o uso de munição letal pelos policiais. Ela segue internada em estado grave e não deve sobreviver, dizem os médicos.

Durante a entrevista coletiva, Zaw Min Tun tentou estabelecer algum tipo de equivalência ao afirmar que um policial morreu devido aos ferimentos sofridos durante a repressão aos protestos —alguns manifestantes têm reagido às forças de segurança atirando paus, pedras e outros objetos contra as tropas.

Para o general, os participantes dos atos de oposição são os responsáveis pela violência, e a campanha de desobediência civil representa a intimidação ilegal dos funcionários públicos.

O Exército concedeu a si próprio extensos poderes de busca e detenção e fez emendas ao código penal do país com o objetivo de reprimir a dissidência com duras penas de prisão.

As últimas eleições parlamentares em Mianmar foram realizadas em novembro do ano passado. A grande vencedora foi a Liga Nacional pela Democracia (LND), partido de Suu Kyi.

A legenda, que comanda o país desde 2015, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento no pleito de novembro, mas foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras. ​

O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para o golpe. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa.

O golpe recebeu duras críticas da comunidade internacional. Líderes políticos de diversas nacionalidades pediram o restabelecimento do governo democraticamente eleito e a libertação de todos os presos civis.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cujo governo considera a tomada de poder em Mianmar um golpe de Estado, anunciou na semana passada um conjunto de sanções contra os militares, incluindo o bloqueio de bens do governo mianmarense, que somam US$ 1 bilhão (R$ 5,3 bi).

A China, como principal parceira regional de Mianmar, vinha adotando uma abordagem mais branda, sem condenar abertamente o golpe. Nesta terça, porém, juntou-se a outros países-membros do Conselho de Segurança da ONU para pedir a libertação de Suu Kyi.

O embaixador chinês em Mianmar, Chen Hai, disse que a situação atual no país "absolutamente não é o que a China deseja" e classificou os rumores do envolvimento de Pequim no golpe como algo "completamente sem sentido".

Ainda assim, houve protestos em frente à embaixada chinesa nesta quarta.

Em entrevista publicada na página da embaixada no Facebook, Chen afirmou ainda ainda que a China mantém relações amigáveis tanto com o Exército quanto com o governo anterior e que não foi "informada com antecedência sobre a mudança política".

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, por sua vez, não mencionou golpe militar ou presos políticos em uma nota divulgada sobre o assunto e limitou-se a dizer que tem a expectativa de “um rápido retorno do país à normalidade democrática e de preservação do Estado de Direito”.


CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

  • 1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
  • 1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
  • 1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
  • 1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
  • 1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
  • 1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
  • 1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
  • 2008: Assembleia aprova nova Constituição
  • 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
  • 2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
  • 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
  • 2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
  • 2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
  • 2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado
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