Governo americano irá rever assistência a Mianmar após considerar que houve golpe de Estado

General que assumiu o poder depois de fazer ruir governo civil democraticamente eleito diz que ação foi inevitável

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Penápolis (SP)

O governo americano determinou no fim da tarde desta terça-feira (20) que considera a tomada de poder pelos militares em Mianmar nesta segunda (1º) um golpe de Estado. O reconhecimento automaticamente implica restrições à assistência que os EUA oferecem ao país do Sudeste Asiático.

Com a decisão, a administração de Joe Biden fica legalmente impedida de manter programas de auxílio ao governo mianmarense, mas poderá continuar enviando ajuda humanitária que, em tese, não passa pelas mãos dos militares.

Militares montam barreira em via que leva ao Parlamento de Mianmar na capital, Naypyitaw - 1º.fev.21/Reuters

A assistência americana somou cerca de US$ 135 milhões (R$ 723,2 milhões) em 2020, segundo o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price. Ele afirmou, no entanto, que apenas uma pequena parcela foi diretamente para o governo mianmarense, sem precisar quanto.

A revisão da assistência será feita pelo departamento chefiado por Antony Blinken. Na segunda-feira, Biden já havia ameaçado impor novas sanções ao país.

"Os Estados Unidos retiraram as sanções à Birmânia [antigo nome de Mianmar] na última década com base no progresso em direção à democracia", disse o presidente americano, em comunicado. "A reversão desse progresso exigirá uma revisão imediata de nossas leis de sanções, seguida de ação apropriada."

Apesar da revisão da assistência, autoridades afirmam que a ajuda humanitária, incluindo a direcionada à minoria muçulmana rohingya, e os programas que promovem a democracia ou beneficiam a sociedade civil não serão afetados.

Em seu perfil no Twitter, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) informou nesta segunda que está "monitorando e avaliando cuidadosamente os potenciais impactos [do posicionamento oficial dos EUA] sobre os programas da agência à medida que a situação evolui".

"A segurança de nossas equipes e parceiros é nossa maior prioridade", continuou a USAID.

Enquanto os EUA avaliavam a situação, o general que assumiu o comando da nação depois de prender seus adversários civis afirmou que a situação tinha chegado a um ponto inevitável.

"Apesar dos repetidos pedidos do Tatmadaw [Exército de Mianmar], este caminho foi inevitavelmente escolhido para o país", disse o general Min Aung Hlaing nesta terça. "Até que o próximo governo seja formado após as próximas eleições, precisamos dirigir o país."

De acordo com o general, a organização de um novo pleito e o combate à pandemia de coronavírus serão as prioridades da junta militar que passou a liderar o país depois da declaração de estado de emergência por pelo menos um ano.

O golpe recebeu duras críticas da comunidade internacional. Líderes políticos de diversas nacionalidades pediram o restabelecimento do governo democraticamente eleito e a libertação de todos os presos civis.

Em nota publicada por meio do Ministério das Relações Exteriores, o governo brasileiro disse que "acompanha atentamente os desdobramentos da decretação do estado de emergência em Mianmar". "O Brasil tem a expectativa de um rápido retorno do país à normalidade democrática e de preservação do Estado de Direito", diz o texto.

O Itamaraty acrescentou ainda que a embaixada na antiga capital, Rangoon, informou que a pequena comunidade brasileira no país está bem e em segurança. A representação recomendou que todos permaneçam em casa, evitem aglomerações e deslocamentos desnecessários.

Entre os detidos pelos militares mianmarenses estão a conselheira de Estado Aung San Suu Kyi, o presidente da Liga Nacional pela Democracia (LND), Win Myint, e outras lideranças do partido, que venceu a eleição de novembro com 83% dos votos.

Biden havia classificado a tomada de poder como um ataque direto à transição de Mianmar para a democracia.

"Trabalharemos com nossos parceiros em toda a região e em todo o mundo para apoiar a restauração da democracia e do Estado de Direito, bem como para responsabilizar os culpados pela reversão da transição democrática", disse o líder americano, em um comunicado nesta segunda.

O americano afirmou ainda que o povo mianmarense "tem trabalhado firmemente para estabelecer eleições, governança civil e transferência pacífica de poder" e que "esse progresso deve ser respeitado".

Junto com a União Europeia, os EUA impuseram sanções contra Mianmar pela primeira vez em 1997, em resposta a denúncias de violações de direitos humanos e ao não reconhecimento do resultado das eleições de 1990.

À época, a LND venceu o primeiro pleito multipartidário em 30 anos, mas foi impedida de assumir o poder —o país viveu sob uma ditadura militar de 1962 a 2011.

Em 2019, o governo de Donald Trump impôs novas sanções contra o comandante das Forças Armadas de Mianmar, o mesmo general que agora assumiu o poder no país. Aung Hlaing e outras autoridades mianmarenses ficaram proibidas de entrar nos EUA em resposta a violações de direitos humanos contra os rohingya, uma minoria muçulmana que se concentra no oeste do país.

A posição do governo Biden também pode acabar abrindo portas para o aumento da influência da China sobre Mianmar. Pequim já é a principal aliada regional dos mianmarenses e, de acordo com o porta-voz da diplomacia chinesa, o regime de Xi Jinping está "em processo de entender melhor a situação" em Mianmar.

Panelaço, buzinaço e desobediência civil

Na noite desta terça (início da tarde, no horário de Brasília), as ruas de Rangoon, a maior cidade de Mianmar, ecoaram o barulho de manifestantes que bateram panelas e acionaram as buzinas dos carros no primeiro protesto generalizado contra o golpe militar.

"É uma tradição de Mianmar afastar o mau ou o carma ruim batendo em baldes de metal", disse San Tint, um morador de Rangoon, à agência de notícias Reuters.

Apesar da insatisfação, os mianmarensescontrários que se opõem aos militares não foram às ruas. O país tem um histórico de reações violentas contra protestos. Em 1988, milhares de manifestantes desarmados foram mortos pelas Forças Armadas durante a repressão a grupos que pediam o fim do regime militar.

Desta vez, grupos de ativistas recorreram às redes sociais para organizar uma campanha de desobediência civil, à qual médicos, enfermeiros e profissionais de mais de 20 hospitais também aderiram fazendo greve.

"Não podemos aceitar ditadores e um governo não eleito," disse o médico Myo Thet Oo, que deixará de trabalhar a partir desta quarta-feira (3).

A LND voltou a pedir a libertação de Suu Kyi, cujo paradeiro sequer foi revelado pelos militares, e exigiu que a junta que agora lidera o país reconheça a derrota nas eleições de novembro. A legenda derrotou o Partido da União Solidária e Desenvolvimento, pró-militar, ao conquistar 396 dos 476 assentos no Parlamento.

Os militares, entretanto, alegam que houve fraudes no pleito e que, por isso, assumiram o controle do país. O regime diz que o poder será transferido após a "realização de eleições livres e justas".

Para um país que viveu quase 50 anos sob domínio militar, porém, a promessa soa vaga e sem compromisso com valores democráticos.

A enviada da Organização das Nações Unidas a Mianmar, Christine Schraner Burgener, disse ao Conselho de Segurança da entidade internacional que o plano dos militares de realizar novas eleições precisa ser desencorajado.

"Sejamos claros: o resultado recente da eleição foi uma vitória esmagadora da Liga Nacional para a Democracia", disse.

Os membros do Conselho, que tem o objetivo de zelar pela paz e pela segurança mundial, reuniram-se nesta terça para, de acordo com a agenda oficial, discutir uma série de medidas "para libertar civis e trazer o país de volta à democracia". A possibilidade de imposição de sanções não foi descartada.


Cronologia da história política de Mianmar

  • 1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
  • 1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
  • 1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
  • 1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
  • 1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
  • 1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
  • 1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
  • 2008: Assembleia aprova nova Constituição
  • 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
  • 2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
  • 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
  • 2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
  • 2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
  • 2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado

Com Reuters

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