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Biden quer papel importante para Kamala, mas não definiu qual

Líder americano tem incluído a vice em eventos e decisões, mas ela não cuida de uma área específica

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Washington | The New York Times

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, recitava uma lista de prioridades da lei de estímulo à economia, em uma de suas primeiras entrevistas coletivas como líder do país, quando parou no meio da frase para se corrigir.

"Esses itens são os que nós consideramos prioridades", disse Biden, colocando ênfase no pronome. Depois, virando-se de frente para a vice-presidente, Kamala Harris, que estava alguns metros atrás dele, Biden pediu desculpas.

O presidente Joe Biden e a vice Kamala Harris, ao fundo, durante anúncio de medidas contra a pandemia - Mandel Ngan - 21.jan.21/AFP

Foi um raro deslize do presidente, que tem trabalhado para incluir Kamala em quase todas as suas aparições públicas e salienta que ela é uma parceira total nas decisões que ele toma.

Essas cenas recorrentes são o resultado mais palpável dos esforços do presidente —e uma diretriz presidencial— de tratar Kamala, a primeira vice-presidente mulher e negra, como uma participante igual em seu trabalho para remendar as rixas políticas do país, abordar as desigualdades raciais e conter a pandemia de coronavírus.

"O presidente nos deu claras instruções", disse em entrevista o chefe de gabinete de Biden, Ron Klain. "Nossa meta é que ela seja sempre vista pelo público."

O relacionamento de Kamala com o presidente foi construído em meio à disputa política implacável da campanha primária democrata, quando ela surgiu como um dos adversários mais fortes de Biden. Uma química surpreendente com Biden os fez disputar a presidência como parceiros, e agora esse relacionamento será crucial para permitir que Kamala defina a si própria no que parece ser "um emprego de espetacular e, acredito eu, incurável frustração", segundo o historiador Arthur Schlesinger Jr.

"Ela saiu de uma campanha fracassada para ganhar o bilhete premiado, como principal substituta de um homem que valoriza o papel de vice-presidente e vai colocá-la à frente nesse papel histórico", disse Gil Duran, ex-assessor de Kamala quando ela foi secretária de Justiça da Califórnia. "Então a pergunta é: o que ela fará nesse novo ambiente?"

A resposta ainda pode ser considerada trabalho em andamento.

A vice-presidente vem se fazendo notar, mais recentemente na manhã de sexta-feira (5), quando foi ao Capitólio antes do amanhecer para dar um voto decisivo no Senado, abrindo caminho para que o pacote de estímulos de Biden contra o coronavírus, de US$ 1,9 trilhão (R$ 10,20 trilhões), seguisse em frente sem o apoio republicano.

E, como a superadora de obstáculos da dupla, Kamala assumiu o fardo de corresponder às expectativas dos eleitores, especialmente das pessoas de cor, que ajudaram a colocar Biden no Salão Oval. É uma carga que, segundo Klain, ela aguenta "graciosamente", embora pese muito sobre seus ombros. Outros dizem que levará tempo para que ela trace seu próprio caminho.

Por enquanto, a equipe de assessores da vice-presidente parece decidida a cimentar e ressaltar sua ligação com Biden por meio de suas aparições conjuntas, enquanto tentam evitar que Kamala se torne uma figura rígida, uma manequim ao lado do presidente, como fez o vice-presidente Mike Pence nos últimos quatro anos.

Como modelo, Kamala só precisa olhar para Biden. Em oito anos como vice-presidente, ele cavou seu próprio espaço ao lado do presidente Barack Obama, mas não antes de superar um relacionamento que foi inicialmente tenso e formal.

Biden e Kamala tiveram uma largada mais rápida. Passaram muito mais tempo juntos que seus antecessores —geralmente quatro a cinco horas por dia na Casa Branca, segundo assessores—, em parte porque a pandemia do coronavírus limitou suas viagens.

Kamala e Biden geralmente começam o dia juntos recebendo o Resumo Diário do Presidente no Salão Oval, uma tradição retomada depois da partida do presidente Donald Trump, que tinha pouco interesse por isso.

Eles também adotaram rapidamente um almoço semanal na Casa Branca, como uma oportunidade de reforçar a confiança e compartilhar ideias de forma privada.

Assessores da vice-presidente salientaram diversas vezes que todos os seus eventos públicos e mensagens são alinhados com membros da equipe de Biden. Uma visita de Kamala, na semana passada, aos Institutos Nacionais de Saúde para agradecer aos cientistas e receber a segunda dose da vacina para coronavírus foi acompanhada mais tarde por um discurso de Biden em que ele anunciou a aquisição de 200 milhões de doses adicionais da vacina.

Essa participação impressionou muito no distrito da deputada democrata Joyce Beatty, de Ohio, presidente da bancada negra no Congresso. Em entrevista, Beatty disse que recebeu ligações de eleitores que se interessaram em receber a vacina depois de ver fotos de Kamala sendo vacinada.

Os americanos negros têm quase o triplo de probabilidade de morrer de Covid-19 que os brancos, segundo dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC na sigla em inglês), mas os americanos brancos têm maior probabilidade de ser vacinados, em parte por causa do racismo sistêmico presente nas instituições de saúde. A visão de uma mulher negra recebendo a vacina, disse Beatty, "deu esperança às pessoas e deu educação".

Esses momentos, em que Kamala se conecta com pessoas de todo o país, são críticos para qualquer futuro que ela possa ter depois do governo. Mas eles também estão alinhados com as mensagens que Biden espera que sua vice-presidente —como mulher, membro de minoria e de uma geração mais jovem— possa passar em prol de sua agenda.

Mas, como Biden bem sabe, quanto mais oportunidades houver para escavar uma identidade separada como vice-presidente, maiores as chances de causar confusão. Como vice-presidente, a loquacidade de Biden muitas vezes pegou desprevenida a Casa Branca de Obama, que seguia um roteiro rígido. Às vezes, incluindo em 2012 quando ele manifestou apoio ao casamento gay antes que Obama o fizesse, Biden rasgava o roteiro totalmente.

Quando Kamala deu uma entrevista na semana passada a um canal de TV da Virgínia Ocidental, seu apoio ao plano de alívio do presidente Biden foi interpretado como uma tentativa de pressionar o senador democrata do estado, Joe Manchin, que se ofendeu e manifestou desconforto por não ter sido avisado.

Kamala também enfrentou perguntas sobre membros de sua família lucrarem com seu relacionamento com ela. Relatos de que a enteada de Kamala foi contratada como modelo uma semana depois da posse causou estranheza mesmo entre aliados do presidente

E uma empresa dirigida pela sobrinha de Kamala que vende mercadorias com temas da vice é uma questão ética para os assessores de Biden desde a campanha. A Casa Branca disse que seu nome não será usado em atividades comerciais que "impliquem endosso ou apoio", segundo uma porta-voz.

Isso não prejudicou a opinião do presidente sobre Kamala. Autoridades da Casa Branca dizem que Biden estava ansioso para que colocá-la para trabalhar, assim como Obama o encarregou do programa de recuperação econômica no início de 2009. Mas o fato de que o presidente não pretende lhe atribuir de imediato uma pasta específica inevitavelmente provocou algumas perguntas sobre seu papel no governo.

Em vez disso, Biden entregou a Kamala uma série de tarefas de alta visibilidade em suas primeiras duas semanas no cargo. Horas depois de o presidente anunciar, na posse, que os Estados Unidos pretendiam retornar à Organização Mundial de Saúde, a vice-presidente estava ao telefone com o doutor Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, confirmando o apoio do novo governo depois dos constantes ataques de Trump à maior instituição global de saúde.

O telefonema enviou uma primeira mensagem de que ela fala por Biden sobre algumas de suas prioridades mais críticas, mas Kamala não se intimidou ao pressionar Biden por conta própria. Nas últimas semanas, assessores do presidente e da vice-presidente disseram que ela diversas vezes pressionou por maior foco para políticas do governo que podem afetar as pessoas desfavorecidas em comunidades urbanas e rurais que muitas vezes são desprezadas.

Durante uma reunião no Salão Oval com Biden e assessores em sua primeira segunda-feira na Casa Branca, Kamala pressionou Jeffrey Zients, o coordenador da força-tarefa de combate ao coronavírus, a dar mais detalhes sobre o uso de centros de vacinação móveis para garantir que a população pobre de áreas distantes seja protegida contra o vírus.

"A vice-presidente pressionou, de maneira muito boa, indagando se há unidades móveis suficientes à disposição. Ao encerrarmos aquela reunião, ela me apertou: 'Qual é a situação das unidades de vacinação móveis? Quantas teremos, em que período de tempo? Elas poderão alcançar comunidades rurais e urbanas? Que progresso vocês fizeram?", disse Zients.

Esse tipo de persistência deixou uma marca profunda em Biden, segundo seus assessores.

Foi algumas horas depois que Kamala salpicou Zients com perguntas que o presidente se viu assumindo sozinho, no palco com Kamala, o crédito pelo plano de alívio. Klain, que serviu a dois vice-presidentes como chefe de gabinete, disse que o caso foi mais uma prova de que Biden tem uma compreensão instintiva de como esses momentos são sentidos.

"Temos um presidente que já esteve lá e entende como é ser a pessoa dois passos atrás em um evento público", disse Klain. "Acho que ele tem uma empatia pela situação dela, que é única."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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