Descrição de chapéu Caixin

Fraudes em cirurgias expõem pacientes em hospitais privados na China

Funcionários exageravam a condição dos doentes, impondo procedimentos falsos e desnecessários

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Matthew Walsh
Caixin

Liu não queria pagar por uma cirurgia extra, embora seu médico insistisse que era essencial. Mas ele estava deitado na mesa de operação havia uma hora e a anestesia em seus órgãos genitais começava a perder o efeito.

Enquanto isso, o médico tinha Liu lá onde ele queria, recusando-se a completar a circuncisão a menos que ele concordasse em desembolsar milhares de dólares por procedimentos adicionais.

As pressões no meio de cirurgias eram apenas uma maneira de a equipe médica do hospital de saúde masculina de Ouya, uma clínica privada no noroeste da China, convencer centenas de pacientes a comprar tratamentos caros e desnecessários, obtendo milhões de dólares em receitas ilegais.

médicos em uma sala de cirurgia
Médicos realizam cirurgia em hospital na província de Shaanxi, no noroeste da China - Zhang Yinan - 20.jan.2019/Xinhua

Encorajado pela regulamentação frouxa e protegido por uma rede de autoridades corruptas, o hospital cometeu fraudes sanitárias descaradas durante quatro anos, em um escândalo que lembrou o clamor público contra clínicas privadas inescrupulosas vários anos atrás.

Especialistas disseram que o escândalo do hospital de Ouya mostra como a tênue abordagem chinesa à regulamentação dos provedores de serviços de saúde famintos por lucros continua apresentando perigos ao público, num momento em que o número de hospitais privados cresce rapidamente no país.

Falsos médicos e enfermeiras

Com seu saguão de mármore e funcionários em uniformes brancos engomados, o Ouya se parece com as dezenas de milhares de hospitais privados que surgiram por toda a China nos últimos anos.

A instalação de 200 leitos em Yinchuan, capital da região autônoma de Ningxia Hui, foi inaugurada em 2015 e oferecia tratamento para problemas masculinos, como doenças sexualmente transmissíveis e infertilidade.

Mas por trás da fachada impecável espreitava uma operação fraudulenta, como mostram registros judiciais e reportagens na mídia. Para atrair clientes, o departamento de comunicação do hospital publicava falsos anúncios online e usava a otimização das máquinas de buscas para garantir que mais pessoas os vissem, segundo um relatório recente da revista China Comment, afiliada à agência de notícias estatal Xinhua.

Posando como profissionais de medicina, a equipe do departamento fazia bate-papos online com clientes prospectivos, usando roteiros bem ensaiados para avaliar suas queixas de saúde, identidades e rendimentos antes de encorajá-los a buscar tratamento na clínica.

Uma vez lá, funcionários que se apresentavam como médicos ou enfermeiras recebiam os pacientes para consultas. Muitas vezes isso era um golpe: uma investigação posterior descobriu que 42 de 77 desses funcionários não faziam parte do banco de dados oficial de profissionais médicos qualificados, e a maioria dos que constavam estavam registrados em outros hospitais, segundo a reportagem.

Diagnósticos duvidosos

Durante as consultas, os funcionários conspiravam para falsear ou exagerar a condição dos pacientes. Vários ex-funcionários confessaram que submetiam homens com disfunção erétil a "testes de fluxo de sangue" que diagnosticavam um "suprimento sanguíneo extremamente baixo" no pênis, segundo a China Comment. Às vezes, enfermeiros colocavam papel rasgado em amostras de urina e as apresentavam como prova de que os pacientes tinham "inflamação grave na próstata".

A equipe do hospital até fazia chantagem com pacientes na mesa de operação. No caso de Liu, o médico encarregado de sua circuncisão lhe disse que ele tinha um problema na próstata e varizes no pênis, recusando-se a terminar o procedimento até que Liu concordou em pagar 58 mil yuans (R$ 48 mil) por um trabalho extra, segundo a reportagem.

Mas pelo menos a circuncisão de Liu era uma operação reconhecida. Segundo a China Comment, uma investigação posterior por autoridades de saúde descobriu que outros procedimentos cirúrgicos oferecidos pelo Ouya, incluindo as chamadas "excisão de nervos" e "redução de sensibilidade na glande", eram "ilegais e fraudulentas".

Tais cirurgias "não teriam dado nenhum benefício ao tratamento dos pacientes e teria aberto feridas que poderiam lhes causar danos físicos", disse Deng Chunhua, chefe do departamento de urologia no Primeiro Hospital Afiliado da Universidade de Sun Yat-sen em Guangzhou e um dos mais conhecidos especialistas chineses em saúde masculina, em entrevista à Caixin. "Se [os procedimentos] fossem ineficazes, também teriam causado danos psicológicos significativos."

As autoridades locais apoiavam os falsários do hospital em troca de presentes e refeições copiosas, segundo concluiu uma investigação posterior do departamento anticorrupção do Partido Comunista em Yinchuan, que enquadrou 13 pessoas por negócios corruptos com um "bando criminoso malicioso".

A China Comment relatou que algumas autoridades de supervisão do mercado ajudaram o Ouya a escapar de denúncias de malfeitos apesar de o departamento de regulamentação do mercado ter recebido mais de 80 queixas entre 2017 e 2019 em sua plataforma de serviços ao público.

Um tribunal decidiu mais tarde que o Ouya manteve algumas vítimas em silêncio usando ameaças e intimidação. Deng disse à Caixin que alguns dos homens também podem ter se sentido envergonhados demais para relatar suas experiências.

"Em um nível, os pacientes relutam em mencionar problemas de saúde masculina ou sexual. Em um nível mais profundo, as pessoas que foram enganadas raramente acham que denunciar vai surtir efeito."

Embora as autoridades locais acabassem reprimindo a publicidade ilegal do Ouya e suas práticas comerciais questionáveis —chegando a fechar temporariamente a empresa para "retificação" em três ocasiões—, as fraudes continuaram durante quatro anos, até que a polícia local abriu uma investigação formal no hospital em 2019.

Em agosto passado, o tribunal decidiu que o Ouya havia enganado 350 pessoas, causado ferimentos a 69 e ganhado ilegalmente 100 milhões de yuans (R$ 83 milhões).

No julgamento, cerca de 48 pessoas foram condenadas por crimes que incluíam fraude, extorsão e danos físicos deliberados. Todas receberam sentenças de prisão, sendo o chefe do grupo, Su Yixiong, condenado a 20 anos de detenção.

Especialistas entrevistados pela Caixin se mostraram surpresos com a natureza e a extensão das ofensas. "Eu realmente acho essas pessoas terríveis", disse Zheng Xueqian, diretor da firma de advocacia Huawei em Pequim e um professor que assessora o governo em questões legais relacionadas à saúde. "Eu penso que eles mancharam o bom nome de nossos hospitais e da indústria de saúde."

Departamentos de segurança pública em Ningxia e Yinchuan recusaram pedidos de comentários da Caixin. Esforços para contatar Liu e outras vítimas não tiveram sucesso.

Problemas privados

O setor de saúde privado da China, em rápido crescimento, e seu sistema regulatório remendado ajudaram a criar as condições para exemplos radicais de fraude como os do Ouya, disseram especialistas à Caixin.

O país ganhou mais de 1.100 hospitais privados no período de 12 meses que terminou em outubro, elevando o total para 23 mil, segundo a Comissão Nacional de Saúde. Os hospitais privados, incluindo os que visam lucros e os dirigidos por entidades não estatais para o bem público, hoje superam seus homólogos públicos em dois a um, embora especialistas digam que eles respondem por muito menos da metade de todas as consultas de pacientes.

Entretanto, uma série de escândalos perturba os provedores de tratamentos médicos privados, notadamente quando a morte de um estudante em 2016 foi ligada à publicidade online enganosa de tratamentos de câncer emitidos por uma vasta rede de provedores de saúde comerciais na região de Putian, no sudeste do país.

O caso do Ouya é uma "extensão" dos problemas associados ao modelo de Putian e um "resultado inevitável" de uma indústria em uma etapa de desenvolvimento incompleta, disse Zhou Shenglai, diretor da comissão especial sobre doença e gestão de saúde da Associação Chinesa de Hospitais.

Vários especialistas em leis e políticas disseram à agência Caixin que embora a China tenha leis e regulamentos que submetem hospitais públicos e privados ao mesmo nível de supervisão, brechas políticas e policiamento inconstante frequentemente criam oportunidades para abusos no setor privado.

Órgãos do governo geralmente inspecionam os provedores de saúde apoiados pelo estado mais rigorosamente que as associações setoriais que se sobressaem em auditorias de entidades comerciais, disse Zheng.

Além disso, a governança dos provedores de saúde privados é "intensa no sentido de planejamento e estrutura geral", mas continua "muito fraca na regulamentação das operações reais da profissão", disse Liu Jitong, professor de políticas e gestão de saúde na Universidade de Pequim.

Uma cultura entre os reguladores de negligenciar a fiscalização até que ocorram crises também prejudica o desenvolvimento saudável do setor, segundo Zhou. "Precisamos deixar de emitir punições pós-fato e preferir administrar as coisas antecipadamente e durante o percurso", disse ele.

Negócio insalubre

Anos depois que os escândalos de Putian danificaram a confiança no setor privado de saúde da China, políticos continuam debatendo como conter os excessos do setor.

O governo apoiou o crescimento de provedores privados como parte das reformas da atenção à saúde que tenta se afastar do histórico sistema planejado da China para um que oferece cobertura mais segura, eficaz e flexível.

Liu Jitong propôs uma discussão da natureza do setor de saúde privado e advertiu contra sua comercialização excessiva. "Esses hospitais deveriam ser para o bem público, eles não são empresas", afirmou.

Zhou disse que as futuras reformas da China devem "apoiar mais e promover" o desenvolvimento de hospitais privados e "administrados socialmente" para que idealmente representem até 60% de todas as consultas de pacientes, para "aliviar a pressão sobre o governo e reforçar o dinamismo dos provedores privados de saúde".

Ele acrescentou que o país deveria endurecer as inspeções em hospitais e liberalizar as regras que impedem que médicos trabalhem em diversas instituições ao mesmo tempo, medida que segundo ele combateria o registro fraudulento de profissionais de medicina.

Vários especialistas pediram uma supervisão mais forte e sistemática dos provedores de saúde. Liu Jitong propôs colocar todos os hospitais, privados e públicos, sob a supervisão geral do Ministério da Saúde.

"A regulamentação do governo, incluindo supervisão e administração, deveria tratar exatamente do mesmo modo as instituições médicas públicas e privadas", disse Gu Xinjiang, professor na Universidade de Zhejiang especializado em políticas de saúde.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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