Descrição de chapéu The New York Times

Funerais lotados de judeus ultraortodoxos em meio a pandemia evidenciam conflito em Israel

País vive tensão entre opinião pública dominante e crescente minoria altamente religiosa

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Jerusalém | The New York Times

A multidão crescia e se movia como ondas no mar. Centenas de homens comprimidos uns contra os outros estendiam os braços em direção ao corpo do rabino, tentando tocar o esquife, numa expressão de devoção religiosa.

Era o auge do terceiro lockdown em Israel, e o local era um distrito ultraortodoxo perto do centro de Jerusalém. As reuniões estavam proibidas. O uso de máscara era obrigatório. As taxas de infecção com o coronavírus estavam subindo, especialmente entre grupos ultraortodoxos como esse.

Judeus ultraortodoxos lotam ruas para funeral de rabino em Jerusalém
Judeus ultraortodoxos lotam ruas para funeral de rabino em Jerusalém - Ammar Awad - 3.dez.20/Reuters

No entanto, centenas de pessoas estavam ali, a maioria delas com a boca descoberta, participando do cortejo fúnebre ilegal de um rabino reverenciado que morrera do coronavírus, ele próprio.

Para esses judeus profundamente devotos, sua presença era um dever religioso e pessoal. Tocar bremente o esquife do rabino e ajudá-lo simbolicamente em sua passagem deste mundo para outro era um sinal de respeito profundo pelo morto.

Mas para a sociedade israelense secular, e até mesmo para alguns do mundo ultraortodoxo, esse tipo de reunião em massa sugere um desrespeito pelos viventes.

“O que é mais importante?”, indagou Esti Shushan, que milita pelos direitos das mulheres ultraortodoxas, depois de ver fotos do cortejo funerário. “Participar de funerais e estudar a Torá? Ou continuar vivos?”

É uma pergunta que encerra um dos conflitos centrais da pandemia em Israel: a tensão crescente entre a opinião pública dominante em Israel e a crescente minoria ultraortodoxa, um grupo fechado de judeus altamente religiosos, também conhecidos como haredis, que rejeitam muitos dos elementos comuns da modernidade em favor do estudo religioso intensivo.

Quando a pandemia começou, um líder haredi prometeu que a obediência à lei judaica salvaria seus seguidores do vírus.

Ao longo da história de Israel os haredis têm sido participantes relutantes da sociedade mais ampla, frequentemente priorizando o estudo das sagradas escrituras em detrimento de empregos convencionais ou serviço militar. O coronavírus veio ampliar essa divisão.

Desde o início da pandemia, partes da sociedade ultraortodoxa vêm resistindo aos protocolos e restrições ordenados pelo Estado secular para combater o vírus, optando em vez disso por seguir os conselhos de seus próprios líderes.

Os haredis não são totalmente unificados, e muitos deles vêm respeitando fielmente as medidas decretadas contra o vírus. Alguns líderes haredis instruíram seus seguidores a usar máscaras, cadastrar-se para receber vacinas e fechar as portas de suas instituiões.

Mas outros rabinos importantes não o fizeram, e algumas seitas ultraortodoxas continuaram a promover casamentos e funerais com grande número de participantes. Mantiveram suas escolas e sinagogas abertas, ao mesmo tempo em que o resto do país fechava as portas. Alguns poucos mais radicais chegaram a promover protestos contra as medidas e a entrar em choque com a polícia.

“É uma disputa que corre solta há décadas”, disse Eli Paley, presidente do Instituto Haredi de Questões Públicas, centro de estudos com sede em Jerusalém. “Há tensões entre os haredis e o restante da sociedade, tensões que mexem com as questões mais profundas da identidade judaica.

“E o coronavírus veio reforçar todas as tensões já presentes.”

Ao longo da pandemia o governo israelense vem relutando em impor sanções aos haredis que violam os protocolos antivírus. Analistas argumentam que o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu não quer desagradar aos parlamentares ultraortodoxos que fazem parte de sua coalizão governista.

Israel lidera o mundo na vacinação de seus cidadãos; o país é visto como um exemplo de como pode ser um mundo pós-pandêmico. Contudo, ao mesmo tempo em que o índice de vacinação sobe, o país ainda está a meses de distância da normalidade. O número de infecções permanece alto, sobretudo entre os haredis.

Rivka Wertheimer, dona-de-casa haredi de 74 anos, fez parte da onda mais recente de pessoas infectadas pelo vírus. Numa noite recente ela estava perto de morrer.

Duas ambulâncias estavam estacionadas diante de seu prédio no norte de Jerusalém, prontas para levá-la ao hospital com urgência. Dois paramédicos estavam dentro do edifício, prontos para colocá-la sobre uma maca. Uma enfermeira ao lado da doente disse que, a não ser que fosse ao hospital naquele momento, Rivka teria apenas mais algumas horas de vida.

Mas sua família estava indecisa.

Seus sete filhos e filhas haviam cuidado dela em casa por mais de três semanas. A Hasdei Amram, uma entre um punhado de associações beneficentes haredis que prestam assistência médica domiciliar a pacientes com coronavírus, vinha enviando enfermeiras, cilindros de oxigênio e medicamentos ao apartamento de Rivka.

A meia-noite se aproximava. As máquinas de oxigênio borbulhavam. Para ajudá-la a decidir, a família chamou o homem em que confiam mais do que em qualquer médico: seu rabino.

“Todo o mundo sabe que o intelecto humano tem um limite”, disse Chaim, o filho mais velho de Rivka. “Quando perguntamos a um rabino, estamos perguntando o que o abençoado Deus quer que façamos.”

A ciência tem valor, mas, para os haredis, fica em segundo plano diante da fé, que rege todos os aspectos de sua vida na comunidade.

Os haredis têm muitos líderes e seitas. Eles se dividem entre as tradições hassídicas, lituanas e sefarditas, cada uma com seus subgrupos próprios. Muitos se sentem frustrados com aqueles que colocam a vida de outros em perigo, desobedecendo as regras de isolamento.

“Eles precisam tomar consciência do que está acontecendo, porque há gente morrendo”, disse Shushan, a ativista haredi. “Quantos funerais não vamos ter ainda por conta deste?”

Mas mesmo os críticos internos dos haredi, como Shushan, não conseguem romper inteiramente com as tradições. Apesar de suas divergências com os outros haredis, ainda defendem sua comunidade e relutam em dar munição a críticos seculares. E sentem-se intimidados com o grau de reação secular negativa contra a comunidade ultraortodoxa.

“Eu me sinto presa entre dois lados”, comentou Shushan. “Tenho medo da pandemia e quero proteger minha família contra ela. Mas também tenho medo do lado secular.”

“Quando eles olham para os haredis, enxergam todos nós como um grupo apenas”, ela disse. “Todos vestidos de preto.”

A sensação de serem incompreendidos é geral em todo o mundo haredi. Muitos ultraortodoxos sentem que são vítimas de dois pesos e duas médidas, na medida em que pessoas seculares são autorizadas a promover grandes protestos diante da residência do primeiro-ministro todas as semanas, mas ultraortodoxos são vilipendiados por chorar seus mortos em grupo.

Eles também acham que seus críticos não compreendem a importância que têm para seu meio de vida o estudo religioso, a liderança rabínica e o luto pelos mortos. Nem quão grande é o transtorno existencial provocado pelo fechamento de escolas religiosas, sendo que muitos ultraortodoxos passam a maior parte de suas horas acordadas em busca da verdade divina.

“Sem estudo, não podemos viver”, explicou Chaim Wertheimer, o filho mais velho de Rivka Wertheimer. “Esta é nossa vida.”

“A Torá é a vontade de Deus. Quanto mais uma pessoa estuda a Torá, mais saberá sobre a vontade de Deus.”

A Hasdei Amram está tentando lançar uma ponte sobre essa divisão. A entidade, cuja sede fica num subsolo em Mea Shearim, recebe milhares de ligações por semana de haredis que adoeceram com o vírus.

A equipe principal da entidade beneficente é composta de voluntários haredis que não têm qualificações médicas formais. Eles atravessam a cidade entregando oxigênio, exames de sangue e esteroides a pacientes com coronavírus que telefonam para pedir sua ajuda.

O trabalho da organização é suplementado regularmente por um pool de médicos e enfermeiros particulares solidários que também percorrem a cidade todas as noites, muitas vezes depois de terminarem seus turnos de trabalho regular. Alguns dos custos são cobertos por donativos, e os próprios pacientes pagam os médicos.

Quando pacientes como Rivka Wertheimer ficam doentes demais para ser tratados em casa, a entidade os aconselha a irem ao hospital. De modo geral, contudo, a Hasdei Amram pensa que muitos pacientes se recuperam muito mais rapidamente em casa, cercados por seus familiares.

O trabalho da entidade é improvisado, levado adiante por pessoas profundamente motivadas, dedicadas ao trabalho e que se preocupam pouco com sua própria segurança.

Mas alguns especialistas receiam que esses voluntários possam demorar demais a detectar quando um paciente precisa de atendimento hospitalar.

“Basicamente, acho uma coisa boa”, disse Ronny Numa, funcionário sênior do Ministério da Saúde que dirige os assuntos ligados aos haredis. “Mas o trabalho da entidade depende de cooperação e transparência. Quando alguma coisa dá errado, precisamos saber o quanto antes.”

Na casa de Rivka Wertheimer, na zona norte de Jerusalém, sua família finalmente concordou em enviá-la ao hospital, depois de consultar o rabino.

Rivka morreu pouco depois de chegar ao hospital, enquanto seu segundo filho, Moshe, aguardava do lado de fora.

Ela foi sepultada no dia seguinte, sob o sol do meio-dia, na encosta oriental do Monte das Oliveiras.

Seus filhos disseram que não se arrependem do que fizeram. Disseram que o momento de sua morte foi decidido por Deus. Ficaram felizes porque a mantiveram em casa, reconfortada pela família, pelo tempo que o fizeram.

Moshe Wertheimer disse: “A verdade é que, se tivéssemos sido mais fortes, ela teria ficado aqui. Não a teríamos mandado ao hospital.”

Tradução de Clara Allain 

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