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Hong Kong reescreve história para fomentar lealdade à China

Governo chinês mudou currículo escolar para que estudantes sejam fiéis ao Partido Comunista

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Vivian Wang
Hong Kong | The New York Times

A ordem parecia inócua, até óbvia: os alunos do ensino primário de Hong Kong deviam ler livros ilustrados sobre as tradições chinesas e aprender sobre locais famosos como a Cidade Proibida, em Pequim, ou a Grande Muralha.

Mas o objetivo era apenas em parte o de fomentar o interesse pelo passado. A finalidade principal das novas diretrizes curriculares anunciadas neste mês pelo governo de Hong Kong é muito mais ambiciosa: utilizar essas narrativas históricas para incutir nos habitantes mais jovens da cidade uma afinidade profunda com a China continental —e, com ela, uma lealdade inabalável a seus líderes e às táticas ditatoriais que eles empregam.

Vista de Hong Kong, em maio de 2020
Vista de Hong Kong, em maio de 2020 - Lam Yik Fei/The New York Times

As diretrizes dizem que os alunos devem desenvolver “um sentimento de pertencimento ao país, um afeto pelo povo chinês, um senso de identidade nacional, além de uma consciência da segurança nacional e senso de responsabilidade por proteger e defendê-la”.

Em seus esforços para sufocar a dissensão, o governo chinês impôs a Hong Kong uma série de restrições rígidas, incluindo novas regras anunciadas nesta semana para impedir pessoas vistas como desleais ao Partido Comunista de se candidatarem a cargos eleitorais.

Mas a estratégia transcende de longe a mera repressão. O governo de Hong Kong também lançou uma vasta campanha de doutrinamento da próxima geração. E está usando a história como uma ferramenta potencialmente poderosa para incutir a obediência e o patriotismo nas pessoas.

Em 2019, quando protestos em massa contra o governo se alastraram pela cidade, as autoridades pró-Pequim acusaram o sistema educacional de promover valores liberais e radicalizar Hong Kong.

Determinadas a evitar uma reprise dos protestos, elas agora estão promovendo agressivamente uma narrativa específica cuja finalidade é reforçar o domínio do Partido Comunista Chinês sobre a antiga colônia britânica.

As autoridadades enxergam essa narrativa como uma medida corretiva necessária para assegurar a estabilidade e unidade. Para seus críticos, trata-se de engenharia social —uma campanha enganosa e distópica para moldar as mentes de crianças e adolescentes.

Em alguns casos o governo vem literalmente reescrevendo a história. Está patrocinando a criação de uma coletânea de “Crônicas de Hong Kong”, em 66 volumes, projetada para custar US$ 100 milhões (R$ 551 milhões) e que promete apresentar um registro “abrangente, sistemático e objetivo” dos últimos 7.000 anos da cidade. As referências à cooperação passada com países ocidentais —que foram reimpressas por décadas sem modificações— desapareceram dos anuários oficiais que resumem as realizações do governo.

Além das aulas de segurança nacional para as escolas, o governo está revendo e cortando pela metade o tempo de instrução dedicado a uma disciplina intitulada “estudos liberais”. Políticos pró-Pequim dizem que as aulas dessa matéria, dedicadas ao fomento do pensamento crítico, envenenaram a cabeça dos jovens contra o governo. As autoridades dizem que o novo currículo deve ensinar fatos sobre a história recente de Hong Kong e da China, mas não pedir que os alunos os analisem.

A equipe de educação do governo nega que seu novo currículo de segurança nacional represente uma lavagem cerebral. Em comunicado divulgado na segunda-feira (22), qualificou essa descrição como “perversa”.

Disputas em torno da história ocorrem em democracias e em Estados autoritários, entre acadêmicos, governos e o público geral. Os historiadores são os primeiros a reconhecer que não existe uma história objetiva. Também os ativistas antigoverno de Hong Kong já retrataram eventos históricos de maneira seletiva para angariar apoio público.

Mesmo assim, o governo chinês, que recuperou o controle do território do Reino Unido, em 1997, está determinado a controlar a narrativa histórica e se mostra singularmente hábil em fazê-lo. Na China continental, fatos históricos de grande importância, incluindo o massacre de manifestantes na praça Tianamen cometido pelo governo em 1989, foram em grande medida deletados da memória pública pela censura e as normas oficiais que exigem a “educação patriótica”.

Críticos receiam que esse modelo esteja sendo levado a Hong Kong. A executiva-chefe da cidade, Carrie Lam, disse recentemente que o projeto das “Crônicas de Hong Kong” ajudou os habitantes, “especialmente a geração mais jovem, a entender melhor o relacionamento inseparável entre Hong Kong e o país”.

O professor de estudos liberais Chan Hei Tung disse que a narrativa promovida pelo governo vai apenas distanciar os estudantes da cidade e do país que as autoridades querem que eles amem. Anteriormente, ele utilizava histórias sobre o passado de Hong Kong para incentivar os alunos a analisar problemas dos tempos atuais. Sob a nova iniciativa do governo, ele disse, “tudo que os alunos precisam fazer é aprender de cor, seguir e respeitar as autoridades”.

“A interação entre a geração deles, sua cidade e a sociedade como um todo vai desaparecer”, disse Chan, que também é membro do comitê executivo de um sindicato de professores pró-democracia. “Eles não participam de um engajamento em transformar a história.”

Assim que foi publicado o primeiro volume, com quase 800 páginas, do projeto “Crônicas de Hong Kong”, em dezembro, ativistas pró-democracia o criticaram por descrever o movimento Occupy Central, de 2014, como ilegal. A crônica não mencionou uma marcha de pelo menos 350 mil pessoas no dia 1º de julho de 2014 que ajudou a lançar o movimento. Mas citou um contraprotesto que teria atraído 100 mil pessoas, segundo a polícia.

Lau Chi-pang, professor de história na Universidade Lingnan, em Hong Kong, e um dos diretores do projeto, disse que espera que as crônicas sirvam como “uma fonte muito útil” para professores.

Lau disse que os autores das crônicas procuraram apenas apresentar os fatos, não fazer julgamentos sobre eles. Mas reconheceu que também ele, como todos os historiadores, imprimiu uma perspectiva política a seu trabalho. “Sempre fui visto como um estudioso pró-governo e não o nego”, ele disse.

Embora o foco do governo sobre a história moderna seja o que vem atraindo mais atenção, as revisões se estendem à antiguidade. Um capítulo do anuário do governo é dedicado à história, começando por relíquias arqueológicas de cerca de 6.000 anos atrás.

Entre 1997 e 2016, o anuário sempre dizia que essas culturas pré-históricas surgiram “localmente, independentemente de qualquer grande influência externa”. Mas essa colocação desapareceu em 2017. Em vez disso, disse o anuário, a cultura de Hong Kong “se desenvolveu a partir da influência da China central”.

As menções sempre presentes ao “domínio britânico liberal” sobre Hong Kong também desapareceram nos anos subsequentes. A participação de Hong Kong na “causa dos Aliados” durante a Segunda Guerra Mundial virou “a causa antijaponesa”, ecoando uma palavra de ordem usada pelo Partido Comunista para alimentar o fervor nacionalista.

Bao Phu, proprietário de uma editora voltada à história chinesa moderna, disse que a reavaliação da história da influência britânica sobre Hong Kong se justifica. Durante o período colonial, os habitantes chineses de Hong Kong foram sujeitos a segregação e racismo, algo que mal chega a ser mencionado nos anuários.

Mas, para ele, também é um erro tentar apagar completamente o legado desse período: “Eles ambicionam erradicar a identidade de Hong Kong, que é diferente da identidade chinesa”.

Amy Lam, que participou dos protestos de 2019, disse que suas amigas que têm filhos pequenos receiam que as novas diretrizes curriculares farão com que as crianças nunca aprendam a levar em conta pontos de vista opostos.

Lam se sente mais confiante em que sua própria filha, de 15 anos, já começou a desenvolver as habilidades necessárias. Mesmo assim, está ansiosa por ver a filha concluir o ensino médio e estudar numa universidade no exterior.

“Daqui a muito pouco ela estará fora do sistema de ensino daqui. Acho que vamos ter que continuar firmes até então e torcer para as coisas não mudarem demais”, ela disse. “Mas sinto pena das crianças menores, especialmente as que estão apenas começando na escola primária, e seus pais. Não será fácil.”

Tradução de Clara Allain 

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