Moscou pode reabilitar estátua do pai do terror soviético após 30 anos

Cidade vai escolher entre criador da Tcheká, precursora da KGB, e príncipe do século 13

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Após quase 30 anos de sua derrubada, que marcou a implosão da União Soviética, a estátua do fundador do terror político no Estado comunista pode voltar ao seu pedestal na frente da sede da antiga KGB, no centro de Moscou.

Estátua de Félix Dzerjinski, derrubada em 1991, no Parque das Esculturas de Moscou
Estátua de Félix Dzerjinski, derrubada em 1991, no Parque das Esculturas de Moscou - Igor Gielow - 28.ago.2016/Folhapress

A cidade anunciou que fará uma enquete online do dia 25 de fevereiro a 5 de março para decidir se a famosa praça Lubianka voltará a abrigar o monumento a Félix Dzerjinski (1877-1926), criador da Tcheká (Comitê de Emergência).

A polícia secreta comunista, surgida em 1917, metamorfoseou-se em diversas agências de repressão ao dissenso no país, culminando na temida KGB, em 1954. Após o fim do império soviético, em 1991, ela foi fracionada e o seu principal ramo hoje é o FSB (Serviço Federal de Segurança).

A alternativa à volta de Dzerjinski será uma estátua do príncipe Alexander Nevski (1221-1263), um dos maiores heróis da história russa e santo da Igreja Ortodoxa do país.

Não é a primeira vez que o avô da KGB tem sua volta proposta —ele já ganhou uma minúscula estátua na rua Petrovka, junto à sede da Polícia Criminal, em 2005.

Em 2015, a volta à Lubianka quase foi consumada a pedido do Partido Comunista. Agora, os proponentes são políticos nacionalistas da Câmara Cívica de Moscou, órgão assessor do Legislativo e do Executivo municipais.

Se a ideia vingar, será um movimento de enorme simbolismo histórico.

No dia 22 de agosto de 1991, uma multidão tomou as ruas de Moscou, após a derrota do golpe da linha dura da KGB e das Forças Armadas para remover o reformista Mikhail Gorbatchov do poder.

A turba foi direto para a praça Lubianka, que desde 1958 abrigava o colosso de 6 metros de altura e 14 toneladas de bronze. Com cordas, tentaram derrubar a estátua, sem sucesso.

Um assessor de Graviil Popov, o primeiro prefeito eleito democraticamente de Moscou, estava no local. Em suas memórias, Alexander Muzikanstski conta que ele queria dar um verniz legal à retirada do monumento, além de temer pela segurança numa queda abrupta —até hoje embaixo da praça fica a estação de metrô homônima.

Ele correu até a prefeitura e conseguiu um decreto de Popov autorizando o uso de cinco guindastes gigantes para a remoção, que ocorreu às 23h28 daquela noite para o delírio dos presentes. "Uma época acabou ali", escreveria o assessor.

O mundo assistia atônito à sequência vertiginosa de fatos. A União Soviética começara a ruir na prática em 1989, após a abertura política promovida por Gorbatchov a partir de 1985.

Naquele ano caíra o muro de Berlim, símbolo da divisão entre a Europa comunista e capitalista, e em 1990 a Alemanha seria reuinificada. Regimes comunistas satélites de Moscou caíam como cartas, até que o movimento chegou à matriz do império, a começar pelos Estados Bálticos.

Naquele 1991, a insistência por independência da Ucrânia, segunda mais importante República da união, minou de vez a autoridade de Gorbatchov.

Os conservadores tentaram um golpe frustrado, o presidente retomou seu cargo, mas o processo de desmantelamento das instituições soviéticas foi galopante, e a queda da estátua do pai da repressão foi seu sinal mais evidente.

Antes, monumentos ao fundador da União Soviética, Vladimir Lênin (1877-1924) haviam caído em locais como a Ucrânia, mas Dzerjinski era um ícone no centro do poder. A estátua foi removida para uma área a oeste do Kremlin, à beira do rio Moscou e ao lado do parque Górki.

Aos poucos, ela começou a receber companhia de outras derrubadas na capital, e hoje cerca de 700 monumentos ficam no agradável Parque das Esculturas —a solução russa para a questão sobre o que fazer com estátuas de pessoas agora indesejadas, problema recorrente no Ocidente.

A eventual volta de Dzerjinski também é um lembrete do arco narrativo russo nos últimos anos. A bagunça liberal dos anos 1990, que levou o país a um capitalismo selvagem e à miséria da população, foi substituída pela promessa de ordem sob Putin, que assumiu como premiê em 1999 e como presidente, em 2000.

Putin, um tenente-coronel da KGB que operou na Alemanha Oriental, foi diretor do FSB, o sucessor histórico da Tcheká de Dzerjinski, antes de ir ao Kremlin. Uma casta de políticos importantes no país pertence ao grupo dos siloviki, os "durões", egressos do sistema de segurança do país.

Para críticos de Putin, os siloviki têm poder ainda maior do que nos tempos soviéticos, quando as estruturas repressivas respondiam ao Partido Comunista. Apoiadores do presidente consideram a realidade mais matizada e veem uma influência apenas relativa.

Seja como for, em 2014 Putin retomou o antigo nome soviético de uma unidade policial de elite, a Divisão Dzerjinski. O líder tem como política a glorificação não do comunismo em si, mas de aspectos do Estado soviético que lhe garantiram o papel de superpotência durante a Guerra Fria.

A ideia, óbvia, é buscar uma associação com o ressurgimento geopolítico da Rússia em seu governo.

Pode ser só uma coincidência, mas a eventual restauração de Dzerjinski ocorre em um momento de evidência negativa do FSB, seu herdeiro. A agência, com longa ficha de acusações de crimes políticos, agora é apontada como responsável pelo envenenamento malsucedido do opositor Alexei Navalni.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.