Descrição de chapéu The New York Times

No Afeganistão, comércio ilegal de rins deixa pobres mais pobres e com graves problemas de saúde

Pobreza generalizada e um hospital privado ajudam a alimentar mercado clandestino que traz mais miséria aos vulneráveis

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Herat (Afeganistão) | The New York Times

Em meio ao burburinho de mendigos e pacientes diante do hospital lotado, vendedores e compradores se examinam cautelosamente: os pobres, em busca de dinheiro por seus órgãos vitais, e os gravemente doentes ou seus parentes, procurando comprar.

O comércio ilegal de rins é florescente na cidade de Herat, no leste do Afeganistão, alimentado pelas extensas favelas, pela pobreza da área ao redor, pela guerra interminável, por um hospital empresarial que se anuncia como o primeiro centro de transplante de rins do país e por autoridades e médicos que fazem vista grossa para o tráfico de órgãos.

No Afeganistão, como na maioria dos países, a venda e compra de órgãos é ilegal, assim como o implante praticado por médicos de órgãos comprados. Mas a prática continua sendo um problema mundial, especialmente quando se trata de rins, já que a maioria dos doadores pode viver com apenas um.

Mohammad, 25, vendeu o rim para pagar o tratamento de seu pai doente, que morreu mais tarde
Mohammad, 25, vendeu o rim para pagar o tratamento de seu pai doente, que morreu mais tarde - Kiana Hayeri/The New York Times

"Essas pessoas precisam do dinheiro", disse Ahmed Zain Faqiri, um professor que procura um rim para seu pai gravemente doente diante do Hospital Loqman Hakim.

Ele foi examinado com desconfiança por um agricultor robusto, Haleem Ahmad, 21, que ouviu falar no mercado de rins e pretendia vender um depois que sua colheita fracassou.

As consequências serão duras para ele. Para os pobres vendedores de rins que se recuperam em Herat, em apartamentos gelados e sem luz, com pintura descascada e pisos de cimento, temporariamente livres da dívida esmagadora mas fracos demais para trabalhar, sentindo dores e sem poder pagar por remédios, o negócio é a porta de entrada para mais miséria. Em um desses locais, recentemente, meio saco de farinha e um recipiente modesto com arroz era o único alimento para uma família com oito filhos.

Para o Hospital Loqman Hakim, os transplantes são um grande negócio. As autoridades se gabam de que a unidade realizou mais de mil transplantes de rins em cinco anos, atraindo pacientes de todo o Afeganistão e da diáspora afegã global. Ele oferece operações por um vigésimo do custo nos Estados Unidos, em uma cidade com um estoque aparentemente infinito de órgãos frescos.

Perguntado se o hospital ganhava muito dinheiro com as operações, Masood Ghafoori, o gerente financeiro, disse: "Você poderia dizer que sim".

O hospital cuida da remoção, do transplante e da recuperação inicial dos dois pacientes, sem fazer perguntas. Os vendedores dizem que suas taxas de internação são cobertas pelos compradores, e depois de alguns dias no pavilhão de recuperação eles são mandados para casa.

A maneira como o receptor do órgão faz o doador concordar com o procedimento não é preocupação do hospital, dizem os médicos.

"Não é nossa função", disse o doutor Farid Ahmad Ejaz, cujo cartão de visita diz em inglês "Fundador do transplante de rins no Afeganistão".

Ejaz a princípio alegou que mais de uma dúzia de moradores pobres de Herat estavam mentindo quando contaram ao The New York Times que venderam seus rins. Mais tarde ele admitiu que "talvez" não estivessem. Entrevistas com outras autoridades de saúde seguiram o mesmo percurso: negações iniciais, seguidas por admissões a contragosto.

"No Afeganistão tudo tem um valor, exceto a vida humana", disse o doutor Mahdi Hadid, membro do conselho provincial de Herat.

Relatos de venda de órgãos remontam aos anos 1980 na Índia, segundo a ONU, e hoje a prática representa aproximadamente 10% de todos os transplantes globais. O Irã, a menos de 130 km de Herat, é o único país onde vender rins não é ilegal, desde que as partes sejam iranianas.

"Sempre há uma lacuna entre as diretrizes internacionais e o que os governos fazem na prática", disse Asif Efrat, professor no Centro Interdisciplinar Herzliya, uma universidade em Israel, apontando que o Afeganistão é um novo ator comparado com países onde o comércio de órgãos é mais prolífico: China, Paquistão e Filipinas. "O consenso internacional atual é a favor de proibir, mas os governos têm incentivos para não segui-lo."

Os escrúpulos morais que mantêm o negócio oculto em outros lugares não são evidentes em Herat. Ejaz e autoridades de saúde indicam a dura lógica da pobreza.

"As pessoas no Afeganistão vendem seus filhos e filhas por dinheiro. Como se pode comparar isso a vender rins?", perguntou ele. "Nós temos de fazer isso porque alguém está morrendo."

Ejaz pareceu tranquilo quando lhe mostrei o cartão de um "corretor" de rins. Ele disse: "No Afeganistão você encontra cartões de pessoas que assassinam outras".

No quarto andar do hospital, três em cada quatro pacientes em recuperação dizem que compraram seus rins. "Sinto-me bem agora", afirmou Gulabuddin, um imame [sacerdote muçulmano] de 36 anos de Cabul, que recebeu um rim. "Nenhuma dor."

Ele disse que pagou cerca de US$ 3.500 (R$ 18,9 mil) pelo órgão, comprado de uma pessoa "totalmente desconhecida", com uma comissão de US$ 80 (R$ 432) para o intermediário. Ele fez um bom negócio: um rim pode custar até US$ 4.500 (R$ 24,3 mil).

"Se houver consentimento, o Islã não tem problema sobre isso", disse Gulabuddin.

O doutor Abdul Hakim Tamanna, diretor de saúde pública da província de Herat, admitiu o crescimento do mercado paralelo de rins no Afeganistão, mas disse que o governo não pode fazer muito.

"Infelizmente, isso é comum nos países pobres", disse. "Há uma falta de Estado de Direito e uma falta de regulamentação em torno desse processo."

A taxa de pobreza do Afeganistão deveria alcançar 70% em 2020, segundo o Banco Mundial, e o país continua amplamente dependente de ajuda estrangeira; as receitas internas só financiam a metade do orçamento do Estado. Sem qualquer rede de segurança pública substancial, os cuidados de saúde são apenas mais uma oportunidade para explorar os mais vulneráveis do país.

No interior do labirinto de ruas de areia nas favelas de Herat, Mir Gul Ataye, 28, lamenta a cada segundo sua decisão de vender um de seus rins. Um trabalhador da construção que ganhava até US$ 5 (R$ 27) por dia antes da operação, em novembro, hoje ele quase não consegue levantar 5 quilos.

"Sinto dor, fraqueza", disse. "Estou doente e não consigo controlar a urina."

Quatro crianças se agrupavam na frente dele no chão de cimento, num quarto pouco iluminado. Ele disse que sustenta 13 membros da família e tinha acumulado cerca de US$ 4.000 (R$ 21,6 mil) em dívidas.

"Foi difícil, mas não tive escolha. Ninguém quer dar uma parte de seu corpo a outra pessoa", afirmou. "Foi muito vergonhoso para mim."

Por seu rim, Ataye recebeu US$ 3.800 (R$ 20,5 mil). Isso foi há apenas três meses. Ele continua endividado, incapaz de pagar o aluguel ou a conta de eletricidade. Ele diz que sente "tristeza, desespero, raiva e solidão". Certa noite ele sentiu muita dor, bateu a cabeça na parede e fraturou o crânio.

Outros em Herat mencionaram motivos semelhantes para vender um rim: dívidas vencidas, pais doentes, um casamento que seria impossível. "Meu pai teria morrido se não tivéssemos vendido", disse Jamila Jamshidi, 25, sentada no chão ao lado de seu irmão, Omid, 18, em um apartamento gelado nos limites da cidade.

Os dois tinham vendido rins —ela cinco anos atrás e ele há um ano— e ambos estavam fracos e doloridos.
Em um acampamento com muro de barro próximo de Herat, um redemoinho de sol, vento e poeira cheio de refugiados de guerra de outras províncias, Mohammed Zaman, um idoso de turbante branco, falou sobre a atração irresistível da operação de rim em Loqman Hakim. Mais de 20 pessoas de sua aldeia, agora expulsas de casa, tinham vendido os rins.

"Meu pessoal está faminto. Não temos terra. Não podemos ter lojas. Não temos dinheiro", disse ele. "Não posso impedir isso."

Em um restaurante local, cinco irmãos falavam que seriam obrigados a vender a terra na província de Badghis devido aos constantes ataques dos Taleban. Todos tinham vendido rins em Herat. O mais jovem tinha 18 anos, o mais velho, 32.

"Não tivemos escolha", disse Abdul Samir, um dos irmãos. "Fomos obrigados a vender. Do contrário, não teríamos vendido nem uma unha."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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