Novos documentos mostram mundo à beira de uma guerra nuclear em 1983

Soviéticos chegaram a armar aviões com bombas atômicas na Europa em meio a exercício da Otan

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São Paulo

Durante dez dias de novembro de 1983, o mundo esteve mais próximo de uma guerra nuclear do que se sabia até aqui.

É o que revelam novos documentos abertos pelo Departamento de Estado dos EUA. Eles detalham a extensão da crise provocada por um exercício militar ocidental que os soviéticos acreditavam ser a preparação de uma guerra de verdade.

Silos de lançamento de mísseis nucleares soviéticos escondido em floresta da Lituânia, hoje parte de um museu
Silos de lançamento de mísseis nucleares soviéticos escondido em floresta da Lituânia, hoje parte de um museu - Igor Gielow - 13.out.2012/Folhapress

A crise em si era conhecida, a partir do relato de ex-espiões dos dois lados e do trabalho de pesquisadores como o americano Nate Jones, do instituto Arquivo de Segurança Nacional, da Universidade George Washington (EUA).

Os novos 380 documentos mostram que Moscou ordenou que pelo menos um esquadrão de caças-bombardeiros Sukhoi-17 em cada regimento seu na antiga Alemanha Oriental e na Polônia comunista fosse armado com bombas nucleares táticas.

Os aviões deveriam ficar em alerta 24 horas por dia, com um tempo de reação máximo de 30 minutos até atingir seus alvos na Europa Ocidental.

Mais: só agora se sabe que, numa revisão dos fatos feita para tratar dos erros de inteligência, os EUA reconheceram não ter notado uma inusual suspensão de voos militares em todo o bloco comunista durante 7 dos 10 dias do exercício.

A única hipótese lógica: os aviões estavam em solo sendo preparados para combate real.

Até aqui, era conhecida a mobilização das forças soviéticas, mas não que se preparavam para uma guerra nuclear no teatro europeu, dividido pelos ganhadores da Segunda Guerra Mundial entre os blocos comunista e capitalista, que provavelmente escalaria para um conflito apocalíptico global.

A crise decorreu de uma sucessão de erros de avaliação dos dois lados, descaso americano e paranoia soviética à frente, e guarda importantes lições para um mundo em que novos riscos de conflitos a partir de acidentes ou equívocos crescem ano a ano.

Em dezembro passado, por exemplo, a Marinha americana foi aconselhada pelo Pentágono a ser mais assertiva em seus encontros com rivais russos e chineses em águas contestadas.

Isso num momento em que Pequim e Washington se estranham no mar do Sul da China e no estreito de Taiwan, e logo após uma quase colisão entre destróieres russo e americano no Pacífico.

O ano de 1983 condensou os maiores perigos de conflito na Guerra Fria desde a crise dos mísseis de Cuba, em 1962. Com a diferença de que os riscos para o resto do mundo eram bastante maiores, assim como hoje.

Dois anos antes, em 1981, os soviéticos experimentavam a estagnação do fim do governo de Leonid Brejnev (1964-82). Pressionada, a cúpula em Moscou disparou a Operação Rian, acrônimo russo para Ataque com Míssil Nuclear, a maior ação de inteligência de toda a Guerra Fria.

Seu objetivo era encontrar, em todos os cantos inimigos, sinais de que os americanos tomariam a ofensiva e atacariam primeiro. Era um misto de temor histórico, devido à traição nazista que levou à invasão de 1941, e paranoia de regime decadente.

Com isso, os nervos ficaram à flor da pele. Não ajudou nada o clima a retórica inflamada de Ronald Reagan, o presidente americano que assumira em 1981 e dois anos depois falava na União Soviética como um "império do mal" a ser destruído, lançando uma corrida armamentista.

Novos mísseis americanos foram colocados na Europa, expondo Moscou a um primeiro ataque devastador sem grande tempo de reação. Os soviéticos tinham os seus apontados para toda capital europeia, mas para atingir Washington haveria uma janela maior de alerta.

Houve uma série de incidentes escalando as tensões. Os novos mísseis americanos fizeram os soviéticos deixar as negociações de controle de armas.

Em setembro, Moscou abateu um Jumbo coreano, confundido com avião-espião. No mesmo mês, um erro de computador quase fez a União Soviética disparar seu arsenal nuclear e, em outubro, Washington invadiu Granada e derrubou um governo de esquerda.

Mas o centro da tensão era a grande trincheira europeia. A Otan (aliança militar ocidental) organizou três grandes exercícios militares na sequência, culminando num em que os próprios líderes dos países estavam envolvidos, o Able Archer 83 (arqueiro capaz, em inglês).

Anual, a simulação foi escalada para contemplar o uso dos novos mísseis numa transição do embate convencional, que seria perdido pelos ocidentais ante as forças numericamente superiores do então Pacto de Varsóvia, para a guerra nuclear tática.

Segundo os relatos conhecidos, os americanos não perceberam o risco do outro lado, tanto que não recomendaram nenhum tipo de reação quando os primeiros sinais de nervosismo soviético emergiram.

"Se eu soubesse o que descobri depois, estaria incerto sobre qual conselho dar", afirmou o general Leonard Perroots, que era responsável pela área de inteligência da Força Aérea dos EUA na Europa na época do exercício, em um dos documentos agora desclassificados como secretos.

Faltam ainda relatos detalhados do lado soviético. "A natureza da discussão em alto nível no Kremlin é largamente desconhecida", escreveu o pesquisador Jones no jornal Washington Post, onde coordena os pedidos de acesso a documentos secretos.

Seja como for, o Able Archer acabou em 11 de novembro e as tensões se dissiparam. Uns atribuem isso à melhoria dos informes de inteligência de lado a lado, outros ao desmantelamento político soviético (três líderes morreriam de 1982 a 1985), embora isso possa ter contribuído para a tensão.

E nunca é demais lembrar que o ex-ator de faroeste Reagan ficou horrorizado ao assistir "O Dia Seguinte", telefilme sobre uma guerra nuclear nos EUA, numa sessão privada em pleno exercício, em 5 de novembro. Coincidência ou não, sua retórica belicista arrefeceu bastante depois daquela noite.

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