Para driblar distopia do presente, livro reflete sobre história da América Latina

'Utopias Latino-Americanas' reúne especialistas para discutir aspectos políticos, culturais e sociais do continente

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Penápolis (SP)

O que era para ser uma espécie de celebração dos 80 anos da historiadora Maria Ligia Prado, dos quais ao menos 47 foram dedicados ao estudo da história da América Latina, materializou-se em uma obra de mais de 20 capítulos com o objetivo de apresentar ao leitor brasileiro motivos para investigar suas próprias afinidades com os vizinhos.

"Eu estava, como ainda permaneço, muito desesperançada e muito preocupada com as mazelas do governo [de Jair] Bolsonaro, e tinha a clareza de que estávamos vivendo tempos de distopia", disse Prado à Folha. "Pensei em fazer um livro que fosse um contraponto a essa situação."

"Utopias Latino-Americanas: Política, Sociedade, Cultura" nasce, portanto, a partir de uma mistura de inquietações do presente e buscas por oportunidades de refletir sobre o passado com o olhar no futuro.

Além de Prado, professora emérita da Universidade de São Paulo que assina a organização do livro, outros 25 especialistas, entre historiadores, jornalistas e internacionalistas, dividem seus conhecimentos sobre aspectos políticos, sociais e culturais dos países do bloco.

Imigrantes venezuelanos aguardam no Chile depois de cruzarem irregularmente a fronteira com a Bolívia - Alex Diaz - 30.jan.21/Reuters

No eixo que discute as nuances políticas do continente, a jornalista Sylvia Colombo, correspondente da Folha para a América Latina desde 2011, assina um capítulo em que procura explicar, com base em informações históricas, "por que o projeto do chavismo venezuelano acabou se transformando numa ditadura de esquerda" e como a Venezuela saltou de um período de pujança econômica para uma nação que se tornou, para alguns, sinônimo de "caos, crise humanitária e exemplo de autoritarismo".

Apesar da atual imagem negativa, porém, Colombo critica a forma como a frase “virar uma Venezuela” tornou-se uma espécie de ameaça utilizada por líderes políticos como se o país vivesse sob algum tipo de maldição.

“É uma frase depreciativa para a Venezuela e para os venezuelanos, que minimiza toda a cultura venezuelana e a contribuição que o país deu para o resto da América Latina, tanto na área da história política, quanto na história cultural e social”, disse.

Colombo escreve em sua análise que Hugo Chávez “travestiu de herói socialista" a figura de Simón Bolívar, líder político venezuelano que teve participação decisiva nos processos de independência da Venezuela e de outros países sul-americanos. Chávez usou sua imagem como uma justificativa para o autoritarismo que "não se encontra nos escritos do Bolívar histórico".

Por sua vez, o ditador Nicolás Maduro serve-se das imagens de Bolívar e Chávez para "referendar seu próprio projeto de se eternizar no poder", afirma a jornalista.

Maduro, segundo ela, beneficia-se de um sistema que usa a aparência de democracia para tentar disfarçar uma ditadura. ”Há eleições, mas são fraudulentas. Há Justiça, mas está cooptada pelo chavismo. Então essa é uma estratégia que vem dando certo [para o regime].”

“Utopias Latino-Americanas” discute ainda uma série de questões étnico-raciais e de gênero, como a presente no artigo assinado pelo professor Flavio Thales Ribeiro Francisco, da Universidade Federal do ABC.

Em seu texto, ele aborda a ascensão dos sujeitos negros no Brasil e na Colômbia enquanto enfrentavam políticas de Estado que promoviam a marginalização de grupos não-brancos.

Para o especialista, as relações raciais nos dois países se diferem da retórica de pureza racial vista em lugares como Estados Unidos e África do Sul, mas isso não significa que tenham sido menos perigosas para indivíduos negros.

O racismo latino-americano, segundo Francisco, caracteriza-se por práticas de reconhecimento das culturas negra e indígena, o que poderia parecer um avanço em direção à equidade, mas, simultaneamente, é marcado pela reprodução de hierarquias raciais.

"É uma celebração da branquitude sem necessariamente reproduzir o discurso de que as nações foram feitas por brancos e para brancos", explica o professor. "Há uma elite que vai celebrar essa mistura racial ou essa miscigenação cultural ao mesmo tempo em que classifica as experiências das populações negras e indígenas como experiências pretéritas, fadadas a desaparecer."

No Brasil, essa dinâmica se manifestou a partir das políticas de Estado que visavam o "embranquecimento" da população por meio da chegada dos imigrantes europeus ao país.

Na Colômbia, que aboliu a escravidão quase 40 antes que o Brasil, em 1851, a estratégia foi a de "invisibilizar" os negros por meio do isolamento geográfico. Ao manter a população negra longe dos olhos da maioria de pele branca, o país estimulou a formação de um imaginário sem a presença da identidade afro-colombiana.

Ao compilar essas e outras várias utopias latino-americanas, Prado disse ter "a esperança como bússola, mas sem ingenuidades". À Folha, classificou-se como "uma pessimista na razão e otimista na vontade".

"Eu sou da geração de 1968, uma geração que queria transformar o mundo. Eu insisto tanto na dimensão do futuro porque, como disse o filósofo Karl Mannheim, a utopia é parte essencial do que nos faz humanos”, disse.

A historiadora e parte dos coautores do livro participam de uma série de debates virtuais transmitidos no canal da Editora Contexto no YouTube. O calendário das lives programadas para os próximos dias, bem como as discussões que já foram ao ar, estão disponíveis nas redes sociais da editora.

Utopias Latino-Americanas: Política, Sociedade, Cultura

  • Preço R$ 59,90 (416 págs.)
  • Autor Maria Ligia Prado (org.)
  • Editora Contexto
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