Prisão de rapper reacende debate sobre liberdade de expressão e leva milhares às ruas na Espanha

Condenado pela 'Lei Mordaça' por críticas à monarquia, Pablo Hasél convocou atos de resistência e desobediência civil

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BAURU (SP)

Para obedecer a uma ordem judicial, o rapper Pablo Hasél, 32, deveria ter se entregado à polícia na última sexta-feira (12). Ele então cumpriria uma pena de nove meses de prisão decretada em 2018 como punição pelo crime de glorificação do terrorismo e insultos à realeza da Espanha.

Em vez disso, Hasél se juntou a um grupo de apoiadores e se refugiou no prédio da Universidade de Lérida, cidade na região da Catalunha, na segunda-feira (15). Na manhã seguinte, porém, dezenas de policiais invadiram o prédio da instituição para prendê-lo.

Parte de rua da cidade de Barcelona é tomada pelo fogo durante os protestos contra a prisão do rapper Pablo Hasél
Parte de rua da cidade de Barcelona é tomada pelo fogo durante os protestos contra a prisão do rapper Pablo Hasél - Nacho Doce - 16.fev.21/Reuters

Houve um breve confronto entre os agentes, armados e usando equipamentos de proteção, e o grupo do rapper, que jogou cadeiras e disparou extintores de incêndio contra os policiais. Então Hasél, conhecido por seu posicionamento político ligado à esquerda radical, foi preso.

"A vitória será nossa. Não haverá esquecimento nem perdão", gritou ele, com o punho levantado, cercado pela polícia pouco antes de ser levado para a prisão. Em retrospecto, a frase pareceu um prenúncio dos atos que se seguiriam.

Nesta terça-feira (16), milhares de pessoas se organizaram em protestos exigindo a libertação do rapper em cidades da Catalunha ou próximas à região, como Barcelona, Lérida, Valência, Vic e Girona. Houve novos embates entre manifestantes —que incendiaram lixeiras e, em alguns casos, saquearam lojas e depredaram outros imóveis— e policiais, que reagiram com golpes de cassetete e balas de espuma (semelhantes às de borracha) para dispersar as multidões.

Ao menos 18 pessoas foram presas e 55 ficaram feridas, incluindo 25 agentes, de acordo com um comunicado divulgado pela polícia regional da Catalunha, que classificou os atos como "incidentes muito graves" em que os participantes "destruíram tudo o que encontraram em seu caminho".

As autoridades catalãs informaram que a polícia "fortaleceu áreas sensíveis" para evitar mais distúrbios, mas as cenas se repetiram nesta quarta (17) em Madri e Barcelona, onde milhares participaram de atos.

Na capital, os protestos foram inicialmente pacíficos, com manifestantes batendo palmas e cantando "sem mais violência policial" e "liberdade para Pablo Hásel". Alguns participantes, porém, começaram a jogar garrafas de vidro e pedras contra policiais, que avançaram contra a multidão empunhando cassetetes. Em meio à confusão, ativistas atearam fogo em contêineres e criaram barricadas nas ruas.

O cenário foi parecido em Barcelona. Quando os manifestantes começaram a atirar objetos contra os veículos blindados, a polícia respondeu com balas de borracha, atiradas na altura do rosto. À medida que os tumultos pareciam diminuir, boa parte das ruas do centro de Barcelona estava tomada pela fumaça de lixeiras em chamas.

De alguma forma, entretanto, a prisão de Hasél parece ter reacendido o debate sobre a liberdade de expressão na Espanha.

O motivo de sua condenação é um conjunto formado por publicações no Twitter e por letras de suas músicas em que, entre outros tópicos, ele compara juízes e policiais espanhóis a nazistas, classifica o rei emérito Juan Carlos como um "chefão da máfia" e se refere à monarquia como "mercenários de merda".

Pouco antes de ser preso, o rapper republicou uma imagem que reúne as postagens alvos de investigação. "Tuítes pelos quais eles vão me prender em alguns minutos ou horas. Literalmente por explicar a realidade. Amanhã pode ser você", escreveu Hasél, como um alerta para seus mais de 130 mil seguidores.

Com o punho estendido, o rapper Pablo Hasél deixa a Universidade de lleida, na Catalunha, após ser preso pela polícia
Com o punho estendido, o rapper Pablo Hasél deixa a Universidade de Lérida, na Catalunha, após ser preso - J. Martin - 16.fev.21/AFP

Antecipando sua detenção, ele fez um apelo para que seus apoiadores enfrentassem o medo e desobedecessem a "tantas imposições injustas de uma tirania cada vez menos camuflada".

"Não podemos permitir que nos ditem o que dizer, o que sentir e o que fazer", continuou. "As injustiças têm alguns culpados e eu os apontei em alto e bom som, com raiva legítima e necessária."

Para Hasél, sua prisão é resultado de um processo em que as autoridades espanholas querem impedi-lo de falar para "evitar a conscientização e, portanto, a luta organizada".

Mais de 200 artistas, incluindo o cineasta Pedro Almodóvar e o ator Javier Bardem, assinaram uma petição se opondo à prisão do rapper. O abaixo-assinado compara a Espanha a países como Turquia e Marrocos, onde artistas e opositores do governo vivem em risco iminente de detenção.

"A prisão de Pablo Hasél torna ainda mais evidente a espada de Dâmocles pairando sobre as cabeças de todas as figuras públicas que se atrevem a criticar publicamente as ações de qualquer uma das instituições do Estado", diz o manifesto.

Mesmo autoridades que condenaram os atos de vandalismo praticados por parte dos manifestantes nesta terça admitem que é necessária uma mudança no código penal que pune os chamados "crimes de opinião".

"Eles são preceitos desatualizados e obsoletos, de outra época", afirmou o ministro do Interior da Catalunha, Miquel Sàmper, acrescentando, no entanto, que "não há nada que justifique a violência extrema" dirigida aos policiais durante os protestos.

"A prisão de Pablo Hasél causa indignação, mas a violência não é o caminho”, disse a prefeita de Barcelona, Ada Colau. “Os motins não vão tirá-lo da prisão e são totalmente injustificados. Esperamos que não se repitam."

Na semana passada, o governo central da Espanha anunciou o início de uma reforma na Lei de Segurança Cidadã, que impõe restrições à liberdade de expressão e ficou conhecida localmente como "Lei Mordaça".

De acordo com a legislação, as publicações e músicas de Hasél podem ser enquadradas como "glorificação ao terrorismo" pelas referências ao ETA (o antigo grupo paramilitar separatista basco que se dissolveu em 2018), e como incitação à violência pelas críticas aos policiais e pelos insultos à monarquia.

Em resposta ao caso do rapper, a porta-voz María Jesús Montero afirmou que o governo está disposto a "fornecer uma estrutura mais segura para a liberdade de expressão" por meio da reforma na lei, ainda em estágios iniciais.

Em um comunicado, o governo de coalizão de esquerda, liderado pelo primeiro-ministro Pedro Sánchez, disse que a reforma introduzirá penas mais brandas em vez de prisão. Além disso, serão visadas apenas ações que "claramente envolvam a criação de um risco para a ordem pública ou provoquem algum tipo de conduta violenta".

Nesse sentido, Sánchez também já recebeu críticas de Hasél. Segundo o rapper, o governo não estava fazendo nada para impedir sua prisão. "Com declarações falsas como tantas outras falsas promessas, eles querem extinguir a solidariedade", tuitou ele.

A "Lei Mordaça" foi promulgada em 2015, durante o governo do conservador Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP). O objetivo declarado era proibir a glorificação da violência de grupos armados como o ETA e também coibir insultos às religiões ou à monarquia.

Desde então, porém, a lei tem sido aplicada de maneira muito restritiva, impondo penalidades criminais a críticas legítimas ao Estado.

Apesar de ter sido condenado a nove meses de prisão, Hasél pode ter a pena aumentada para mais de dois anos porque a sentença inclui uma multa que o rapper se recusou a pagar —assim como outros espanhóis indiciados sob a "Lei Mordaça".

​Os problemas de Hasél com a Justiça espanhola podem, entretanto, ser ainda maiores. Em sua ficha, ele tem outra condenação por atos semelhantes, mas o cumprimento da sentença estava suspenso. Além disso, ele aguarda pareceres da Justiça sobre duas outras sentenças das quais recorreu: uma por agredir um jornalista e outra por agredir uma testemunha durante uma audiência no tribunal.

Com Reuters e AFP

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