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Armênia

Ruínas da guerra no Cáucaso renovam a rivalidade entre Rússia e Turquia

Assertividade de Erdogan e status final de Nagorno-Karabakh ameaçam vitória de Putin

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São Paulo

Os 44 dias da segunda guerra em torno de Nagorno-Karabakh, vencida pelo Azerbaijão em novembro passado, atualizaram o status quo do sul do Cáucaso, um dos mais conflituosos entrepostos de potências da história.

Assim como ocorreu em boa parte dos últimos quatro séculos, novamente estão frente a frente a Rússia e a Turquia.

Soldado russo de força de paz ao lado de blindado para tropas em bloqueio perto de Stepanakert, capital de Nagorno-Karabakh
Soldado russo de força de paz ao lado de blindado para tropas em bloqueio perto de Stepanakert, capital de Nagorno-Karabakh - Karen Minasyan - 29.nov.2020/AFP

Há ainda o Irã como ator regional importante, mas a quantidade de problemas em Teerã parece ter tirado o apetite dos aiatolás de se envolverem na disputa dos azeris, que têm laços étnicos fortíssimos com a antiga Pérsia.

Desde a formação da União Soviética em 1922, Moscou tinha a mão mais forte na região, cujos países foram absorvidos pelo império comunista.

Nagorno-Karabakh era um pedágio desse processo. Região historicamente armênia, ela acabou dentro do território do Azerbaijão para não melindrar os turcos e asseverar alguma estabilidade fronteiriça. Os azeris são um povo de língua turca e muçulmanos em sua maioria como eles.

A situação foi empurrada com a barriga até o início do ocaso soviético, em 1988, quando estouraram conflitos nacionalistas. Após o fim formal da união, em 1991, eles evoluíram para a primeira guerra moderna na região, vencida pela Armênia em 1994.

Com ela, além de Nagorno-Karabakh, sete distritos azeris a seu redor foram ocupados. Centenas de milhares de moradores foram embora, alimentando um ciclo de ódio mútuo que remontava aos deslocamentos de lado a lado nos tempos que as potências externas eram o Império Russo e o Império Otomano.

Com escaramuças ocasionais, a situação se estabilizou até que, no ano passado, o ambicioso governo de Recep Tayyip Erdogan resolveu agir. Ajudou a armar Baku com drones de ataque modernos e até enviou caças F-16 turcos para apoiar o aliado.

O enfraquecimento de todos os países devido à pandemia também serviu de catalisador. Para Baku, uma oportunidade de recuperar o que considera seu; para Ancara, uma distração para seu público doméstico e uma forma de estabelecer sua projeção no Cáucaso.

Quem não gostou nada foi o presidente russo, Vladimir Putin, que tinha uma relação ruim com o premiê armênio, Nikol Pashinyan, apesar da importância geopolítica do vizinho.

Na Armênia os russos mantêm uma grande base militar no oeste do país, e por tratado são obrigados a defender Ierevan de agressões externas. Mas o acordo não se aplicava a Nagorno-Karabakh, cuja jurisdição era objeto de questionamento internacional.

Assim, Putin nada fez para evitar o começo da guerra. Baku foi ágil, e seu autocrata, Ilham Alyiev, determinado a usar o apoio turco. Tomou várias áreas ocupadas pelos armênios e mesmo cerca de 30% de Nagorno-Karabakh.

Foi um processo sangrento. Morreram ao todo cerca de 5.500 soldados e 150 civis, divididos de forma mais ou menos igual. A infraestrutura da área armênia foi duramente afetada, com bombardeio de pontes, linhas de comunicação, escolas e hospitais.

Ierevan, apoiando as chamadas Forças de Defesa de Artsakh, o nome armênio para a região, atacou alvos civis também dentro do território azeri. Para a Anistia Internacional, ambos os países fizeram isso de forma deliberada, e relatos de brutalidade não param de surgir.

Sem alternativa, ao fim Pashinyan aceitou uma altamente impopular paz, pois perdia todos os ganhos de 1994 e mantinha provisoriamente um Nagorno-Karabakh menor.

Para Putin, foi uma vitória política, já que ele mediou o acordo e se encarregou de despachar 2.000 soldados para cuidar de implementá-lo por cinco anos, renováveis por mais cinco.

Seu objetivo estratégico, o de manter um pé firme no seu exposto flanco sul, que serve de ligação entre os movimentos jihadistas russos do Norte do Cáucaso com a turbulência da Síria e do Iraque, fora alcançado.

Mas o status final de Nagorno-Karabakh ainda precisa ser definido, e o tom das acusações de lado a lado parece impedir um final feliz para a história. Baku deu o exemplo ao criticar duramente a França, uma das negociadoras originais na região, cujo Parlamento sugeriu reconhecer o enclave armênio como independente.

Erdogan, por sua vez, que passou tropas vitoriosas em revista com Alyiev, quis mais. Desde o começo do mês, está promovendo um grande exercício militar conjunto com Baku na sua fronteira leste, quase diretamente mirando as forças russas na Armênia.

Não satisfeito em ver o aliado vencedor e de ter arriscado um confronto com os russos, o presidente turco exigiu participar das forças de paz que monitoram o acordo azeri-armênio.

Moscou não permitiu o envio de tropas de patrulha, mas aceitou montar um centro de controle na região de Agdam, estabelecido no dia 30 de janeiro com 120 soldados, metade russos, metade turcos.

A dinâmica parece que vai repetir a tensa relação das duas potências nas guerras civis da Síria e da Líbia, onde apoiavam lados diferentes e chegaram a frágeis acordos.

Sublinhando toda essa questão de projeção de poder há a economia. O Azerbaijão é um grande poço de gás natural, e nos últimos anos desviou de sua histórica ligação com a Rússia e deitou dutos diretamente para a Turquia, onde hoje fornece mais de 80% do produto.

O objetivo final é a Europa, por meio de outros gasodutos, evitando a antes obrigatória passagem pela Rússia.

O fato de não ter feito uma defesa mais enfática da posição armênia durante a guerra indicava uma tentativa de Putin de manter Baku próxima, o que com a ação incisiva de Erdogan não foi exatamente bem sucedido.

A Armênia, por sua vez, viu seu governo quase colapsar e, sem recursos naturais para entrar no jogo geopolítico maior, teve de acatar o destino e tolerar a presença turca por perto.

Os vizinhos não se reconhecem mutuamente porque Ancara não aceita a noção de que os otomanos promoveram um genocídio de armênios em 1915.

Perdidos no meio dessa briga de cachorro grande estão as vítimas da vez, os deslocados armênios.

A exemplo de seus pares azeris no passado, e armênios antes, numa interminável discussão sobre quem merece herdar a terra, agora são eles que lotam estradas com seus pertences e estão sem lar definido.

A definição do que será feito com Nargono-Karabakh pode dar uma luz para essa gente, embora seja bastante improvável que qualquer solução vá pôr fim às recriminações de lado a lado.

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