Assassinato de executiva é sintoma de apagão na proteção a mulheres, dizem britânicas

Entidades afirmam que morte de Sarah Everard deixa claro que não adianta 'se comportar direito' para evitar violência

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Bruxelas

No dia 12 de fevereiro, o ex-paramédico do serviço de ambulâncias da Inglaterra Andrew Weeler, 46, foi condenado a 21 anos de prisão por vários estupros cometidos ao longo de nove anos.

Três semanas depois, a executiva de marketing Sarah Everard, 33, voltava para casa em Londres quando desapareceu. Seu corpo foi encontrado dias depois em um bosque no sudeste do país.

Os dois casos estão em pontas extremas do que ativistas chamam de um “apagão na punição de estupros”, que levou milhares às ruas em protesto no Reino Unido neste mês.

A história de Weeler é uma exceção. Não pelo teor da agressão —55.259 estupros foram relatados à polícia da Inglaterra e do País de Gales no último ano, e pesquisadores dizem que ao menos dez vezes mais ocorrem sem que haja registro.

Moça de cabelos castanhos bem claros presos dos lados sorri para a câmera
A executiva de marketing Sarah Everard, 33, que desapareceu quando voltava para casa em Londres na noite de 3 de março; seu sequestro e morte levantaram protestos no Reino Unido - Metropolitan Police /AFP

O paramédico é um exemplo raro porque integra os 2,7% das queixas de estupro que acabam em condenação —foram 1.439 em 2020. O apagão, porém, já é documentado na etapa anterior: no mesmo período, só 2.102 (3,8%) das queixas na delegacia viraram processos.

Ou seja, a polícia falhou em encontrar o culpado ou a Promotoria não levou a denúncia adiante em 96,2% dos casos. “Essas taxas indicam um sistema falido, em que os infratores escapam impunes e são livres para atacar outras mulheres”, diz Andrea Simon, diretora da Coalizão Evaw (sigla para “acabem com a violência contra a mulher”, em inglês).

Na raiz do problema, diz ela, está a tendência geral de culpar as vítimas em vez de focar o comportamento dos agressores, um mito desmascarado pelo assassinato de Everard. Na noite em que foi sequestrada e morta, ela havia cumprido todo o “manual de conduta” recomendado a mulheres para evitar agressões.

Estava vestida sobriamente, não havia bebido, caminhava em lugares iluminados e movimentados às 21h30 e, antes de deixar a casa de amigos, telefonou para o namorado para avisar que estava indo para casa, enumera a professora de criminologia Nicole Westmarland, pesquisadora de violência contra mulheres da Universidade de Durham, que concorda com a avaliação de Simon.

“Estamos sempre falando sobre como seguir um 'plano de segurança' —ande com as chaves nas mãos, evite vagões vazios—, mas raramente ouvimos sobre o que move os agressores e como impedir esse comportamento”, diz a diretora da Evaw.

A resposta do governo britânico também não foi à raiz. No dia 15, o premiê Boris Johnson anunciou “uma legislação histórica para endurecer as sentenças e colocar mais policiais nas ruas”.

A proposta inclui dobrar o financiamento para iluminação e câmeras de vídeo nas ruas e elevar o policiamento em parques, becos e entornos de bares. Há planos de colocar policiais à paisana em clubes noturnos e bares, para “identificar criminosos predatórios e suspeitos”.

Tudo isso mais o aspecto ressaltado pelo premiê —leis mais duras, sentenças mais longas— não comove as organizações do setor. “Precisamos de uma reforma radical na forma como o Judiciário trata a violência contra mulheres, não de sentenças mais longas para o ínfimo número de infratores condenados”, diz Simon.

Um levantamento feito pelo Bureau de Jornalistas Investigativos mostrou que a porcentagem de infratores condenados cai 40% quando os suspeitos são policiais. A organização jornalística também afirma que vítimas de policiais tendem a não registrar queixas —em entrevistas, várias relataram ter sido ameaçadas e temer retaliação.

A Evaw e outras entidades de defesa das mulheres chegaram a entrar na Justiça para responsabilizar a Promotoria (Crown Prosecution Service, ou CPS) pelo “colapso chocante e sem precedentes” no volume e na porcentagem de queixas de estupro que resultam em julgamentos.

A ação sofreu uma primeira derrota no último dia 15, vista como “preocupante” pelas associações, ainda mais por ter ocorrido na sequência do assassinato de Sarah Everard. “Está claro que o sistema de justiça criminal falha em proteger as mulheres e combater a epidemia de violência masculina”, afirmam.

O fato de que um policial, Wayne Couzens, 48, foi apontado como o principal suspeito pela morte de Sarah Everard e a repressão policial a uma homenagem à executiva morta também inflamaram o movimento “Kill the Bill” (mate o projeto de lei, em inglês), que se opõe a um aumento de poder policial para reprimir protestos, visto como ameaça ao direito de expressão.

​Para a Coalizão Evaw, o governo falha ainda na formação de seus quadros. Nenhum departamento do serviço público ouvido em levantamento da entidade investia em iniciativas específicas de combate à violência contra mulheres. “Se essa ênfase em prevenção continuar tão pequena, o governo não pode esperar redução nas estatísticas de violência contra as mulheres nem nos enormes custos associados a ele”, diz o relatório.

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