Descrição de chapéu The New York Times terrorismo

Ex-escravas do Estado Islâmico reencontram os filhos depois de 2 anos

Líderes da religião yazidi não permitem volta das crianças, e elas terão de se refugiar em outros países

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Jane Arraf
The New York Times

As nove jovens entraram correndo no escritório simples de um posto de fronteira na Síria, procurando pelos filhos e filhas que lhes haviam tirado dois anos atrás e que elas pensavam que nunca mais veriam.

As crianças assustadas, vestidas com jaquetas estofadas novas do orfanato de onde vieram, eram, na maioria, pequenas demais para se lembrar de suas mães.

Elas começaram a chorar quando as mulheres, soluçando, as agarraram e beijaram, afastando-as das funcionárias do orfanato que eram as únicas cuidadoras que conheciam.

Em posto na fronteira entre o Iraque e Síria, mulheres yazidi esperam para se reunir com os filhos que não veem há anos. O encontro, em 4 de março, foi o primeiro para unir as mulheres e os filhos que elas tiveram enquanto eram escravas sexuais de extremistas do Estado Islâmicos.
Em posto na fronteira entre o Iraque e Síria, mulheres esperam para se reunir com os filhos que não veem há anos - Ivor Prickett/The New York Times

"Fiquei tão feliz, mas foi um choque para nós duas", disse uma das mães, que há quase dois anos sonhava reencontrar sua filha. "Ela ainda não está acostumada comigo." A menina tem 2 anos e meio.

A entrega secreta, na fronteira entre Síria e Iraque na semana passada, foi até agora a única reunião de mulheres yazidis do Iraque com os filhos que elas tiveram enquanto foram escravizadas por membros do grupo terrorista Estado Islâmico (EI).

A saga dessas mulheres, que sobreviveram a horrores quase inimagináveis em cinco anos de cativeiro, é um dos muitos detalhes trágicos e pouco conhecidos na história da conquista de grandes áreas do Iraque e da Síria pelo EI, em 2014.

Para elas, a história está longe de terminar, e o caminho que têm pela frente ainda é incerto.

Para a traumatizada comunidade yazidi, uma pequena minoria religiosa do norte do Iraque, as crianças são uma ligação direta com os combatentes do EI que assassinaram milhares de yazidis e capturaram outros 6.000. Yazidis idosos disseram que não aceitariam as crianças na comunidade, e um deles disse que as crianças correm o risco de ser mortas se suas mães as levarem para casa.

Quando as jovens foram libertadas, com a queda do último trecho de território do EI na Síria, dois anos atrás, elas enfrentaram uma escolha dilacerante: se quisessem voltar para suas famílias no Iraque, teriam que deixar seus bebês para trás. Muitas foram informadas, incorretamente, que poderiam visitar as crianças.

Agora elas foram obrigadas a escolher novamente. As mulheres que entraram na Síria na semana passada tiveram de cortar os laços com seus pais, irmãos e aldeias natais se quisessem reencontrar seus filhos.

"Ninguém pode realmente compreender o passo enorme que essas mulheres deram, os riscos que estão assumindo, como elas são incrivelmente corajosas", disse a médica iraquiana Nemam Ghafouri.

Cerca de outras 30 crianças, cujas mães tiveram medo de pedir sua devolução ou decidiram não ficar com elas, continuam no orfanato no nordeste da Síria.

Foi uma decisão angustiante para as mulheres, muitas das quais eram crianças quando foram sequestradas pelos combatentes do EI. Nenhuma delas pôde contar a suas famílias que estavam indo embora e talvez não as vissem de novo, por medo de pôr em risco a operação.

"Estou chorando há três dias", disse uma das jovens que, para reencontrar sua filha de cinco anos, abandonou sua mãe idosa. "Eu acho que isso ia matar minha mãe. Ela é mãe também. Ela morreria por mim assim como eu faria por minha filha. É uma situação muito difícil para mim."

Por enquanto, as 9 mulheres e 12 crianças estão escondidas em um local seguro não revelado no Iraque. Com uma promessa de refúgio em um país ocidental pelos organizadores da operação, elas estão desesperadas para serem aceitas. Outras 20 mães, aproximadamente, aguardam com seus filhos no orfanato sírio para ver o que acontece.

O New York Times concordou em adiar a publicação da reportagem até que as mulheres e as crianças estivessem seguras, e não as identifica para sua proteção.

Um ex-diplomata americano, Peter Galbraith, organizou o reencontro cruzando fronteiras e linhas partidárias, conseguindo ajuda de governos até então indiferentes. Galbraith, que tem laços estreitos com autoridades curdas no Iraque e na Síria, disse que passou mais de um ano tentando conseguir a aprovação para que algumas das mulheres recuperassem seus filhos e os levassem para o Iraque, missão que foi adiada pela pandemia.

O orfanato fica em uma área no nordeste da Síria que é semiautônoma, controlada por autoridades curdas apoiadas pelos EUA. A província de Sinjar, de onde vêm os yazidis, fica além da fronteira, no Iraque.

Galbraith disse que uma autoridade não identificada da Casa Branca havia ajudado a eliminar os últimos obstáculos com um telefonema para um general sírio-curdo que é aliado dos EUA. O Conselho de Segurança Nacional americano não respondeu a um pedido de comentários.

Para as mulheres, o pesadelo começou quando as forças do Estado Islâmico varreram o norte do Iraque em 2014, declarando o território um califado islâmico. O grupo terrorista considera os yazidis pagãos.

Quando os combatentes do EI ocuparam o território yazidi em agosto daquele ano, separaram os homens e meninos mais velhos e massacraram cerca de 10 mil deles, no que a ONU e o Congresso americano declararam um genocídio.

Cerca de 6.000 mulheres e crianças foram capturadas, e muitas foram vendidas para combatentes do EI. Elas foram tratadas como propriedade descartável, violentadas repetidamente, vendidas à vontade. Cerca de 3.000 yazidi ainda estão desaparecidas.

Quando o EI foi expulso do sudeste da Síria, no início de 2019, a maioria das mulheres yazidis foi libertada e levada com seus filhos para abrigos no meio do caminho. Idosos yazidis lhes disseram que poderiam voltar para casa, mas teriam de deixar os filhos. Muitas crianças foram levadas para o orfanato dirigido por curdos.

Algumas mulheres que não foram identificadas como yazidis, incluindo algumas que esconderam sua origem étnica para manter os filhos, foram levadas para Al Hol, um campo de detenção em más condições no nordeste da Síria. Apesar da situação do campo, a mulher com a filha de dois anos fingiu ser árabe para poder ficar ali com a menina.

Nos últimos dias do califado, quando ataques aéreos dos EUA castigaram Baghuz, na Síria, a mãe foi ferida por estilhaços e lutou para manter a menina viva. Alimentou-a com farinha misturada com água para que não morresse de fome e fez roupas de bebê com tecido cortado de suas próprias roupas.
Ela estava determinada a cuidar da criança pela qual havia lutado tanto.

Mas depois de seis meses foi obrigada a admitir que era yazidi. Então foi levada para o abrigo intermediário, mas se recusou a ir sem a menina. Sua família suplicou que ela voltasse.

"Minha família ligava e dizia: 'Volte para casa, depois você pode voltar para vê-la'", disse a mulher.
Depois de três meses, ela concordou e voltou para Sinjar. Mas, assim como as outras mães, nunca deixaram que visse sua filha novamente.

"Eu sou a mãe dela. Preciso cuidar dela", disse a mulher. O pai da criança e seus parentes foram mortos na Síria, disse a jovem. "Ela só tem a mim. Quem se importa com o pai?"

Os idosos e líderes religiosos yazidis se importavam com os pais.

Levar os filhos de terroristas do EI para Sinjar "destruiria a comunidade yazidi", disse ao New York Times em entrevista nesta semana a maior autoridade religiosa yazidi, Baba Sheikh Ali Elyas. "É muito doloroso para nós. Os pais dessas crianças mataram os pais destes sobreviventes. Como podemos aceitá-las?"

Além disso, a lei iraquiana especifica que o filho de um pai muçulmano é muçulmano, por isso as crianças não podiam ser consideradas yazidis. A fé yazidi é uma religião fechada que não aceita convertidos, mesmo que a lei iraquiana permitisse conversões do islamismo.

Irritado pelo que considera um enfoque internacional sobre algumas mulheres yazidis, quando milhares delas estão desaparecidas e mais de 140 mil mofam em campos de deslocados, o xeque afirmou: "Os yazidis são todos órfãos. Ninguém está cuidando de nós".

De fato, seis anos depois que o EI foi expulso da região de Sinjar, no norte do Iraque, o território yazidi ainda está cheio de valas comuns e casas danificadas e destruídas. As crianças deveriam ser cuidadas por organizações de ajuda em outros países, disse Elyas. Se as mães quiserem ir para outros países com seus filhos, ninguém as impedirá, afirmou.

Outro líder yazidi, o príncipe Hazem Tahsin Bek, disse que as crianças correriam perigo se voltassem com suas mães. "As famílias podem tolerar as mulheres, mas não vão suportar as crianças", explicou ele. Questionado se as crianças poderiam ser mortas, ele disse que é uma possibilidade.

Quando uma das mulheres telefonou para sua família nesta semana para lhes dizer que estava com a filha e esperava que a família as aceitasse, um de seus irmãos ameaçou as duas. "Espero que o governo encontre um lugar seguro para nós", disse ela.

Nadia Murad, uma sobrevivente yazidi, advogada e Prêmio Nobel da paz, disse que as mulheres devem poder decidir se querem se reunir com seus filhos. "Elas não tiveram escolha quando foram levadas ao cativeiro", disse ela ao New York Times. "Não tiveram escolha em nada disso, e devem receber ajuda e decidir o que querem."

Antes que as mulheres embarcassem na viagem para recuperar seus filhos, Galbraith lhes disse que outros países as aceitariam, perspectiva que está longe de garantida.

No esconderijo alguns dias depois, a grande casa ecoava com gritos e risos de crianças, todas com menos de 6 anos. Algumas das mães as observavam com preocupação, temendo o que poderia acontecer a elas. Várias mães disseram que esperam receber refúgio em outro país, com seus filhos e filhas.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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