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Guerra na Síria completa 10 anos e destrói perspectivas de uma geração

Conflito segue sem expectativa de término, e país vive piora econômica e avanço da Covid-19

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Crianças sírias separam sucata, que inclui cartuchos e invólucros de munições usadas, na província síria de Idlib

Crianças sírias separam sucata, que inclui cartuchos e invólucros de munições usadas, na província síria de Idlib Aaref Watad - 10.mar.21/AFP

São Paulo

O estopim para a guerra da Síria foi uma pichação. Nos muros de um colégio, estudantes escreveram "queremos a queda do regime" e “sua hora vai chegar, doutor”. O doutor era Bashar Al-Assad, ditador do país, e a resposta do governo foi prender e torturar cerca de 15 menores de idade.

Naquele março de 2011, época de Primavera Árabe, a prisão dos jovens gerou uma onda de protestos que clamava por mais direitos e menos autoritarismo. À medida que as manifestações foram se espalhando, a repressão ficava mais brutal. O governo sitiou cidades onde os atos eram mais fortes, e, nos meses seguintes, militares deixaram o Exército para formar milícias contra o governo.

Quinze de março, considerado o dia do início dos protestos, marca o aniversário do conflito. As estimativas de mortos variam. O Observatório Sírio de Direitos Humanos confirmou a morte de ao menos 380 mil pessoas, mas calcula que o número pode ser ainda maior e chegar a quase 600 mil.

Hospital atingido por bombardeios em Aleppo, na Síria
Hospital atingido por bombardeios em Aleppo, na Síria - Karam Almasri - abr.16

Ainda que a situação tenha sido considerada uma guerra civil em 2012, o conflito mexeu com a comunidade internacional. Ao lado de Assad, ficaram Rússia e Irã. Com os opositores, que se dividem em diversos grupos e alimentam disputas internas, Arábia Saudita, Qatar e Turquia.

Para complicar, a partir de 2013 a facção terrorista Estado Islâmico (EI) conseguiu emergir e conquistar uma grande faixa do território sírio, o que atraiu potências do Ocidente para o conflito: uma coalizão liderada pelos EUA fez ataques massivos e apoiou rebeldes, derrotando o grupo jihadista no país.

Assad quase perdeu a guerra, mas a Rússia impediu que sua hora chegasse ao combater os opositores. Hoje, o ditador controla cerca de 60% do território. O conflito esfriou, mas não acabou.

"Nos últimos três anos, houve uma estabilização, mas o país está longe de parar em pé e não tem nem sinal de autoridade efetiva”, avalia Karabekir Akkoyunlu, professor de Relações Internacionais da FGV. “A Síria deixou de ser uma tragédia aguda para ser uma tragédia crônica.”

David Kaelin, coordenador do programa de água e habitação do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) na Síria, afirma que a situação está mais calma no centro e no sul do país, mas os combates seguem ocorrendo no norte. Os desafios humanitários, diz ele, continuam enormes.

Engenheiro, Kaelin trabalha na reconstrução de escolas e redes de água e energia. Ele conta que a infraestrutura do país sofreu com falta de manutenção mesmo onde não houve bombardeios e, “se for tratada assim por mais anos, chegará a um ponto em que não teremos como recuperá-la”.

A falta de profissionais especializados dificulta a reconstrução. Muitos deles deixaram o país, e a guerra atrapalhou a formação de uma geração. Os garotos que picharam o muro em 2011 tinham entre 10 e 15 anos. Os jovens que estão hoje na faixa dos 20 anos viveram seus anos de estudo em meio ao conflito.

“É comum que os refugiados já tenham sido forçados a mudar de lugar quatro ou cinco vezes”, comenta Joel Ghazi, coordenador de operações da ONG Médicos Sem Fronteiras para o noroeste da Síria. “E sem poder estudar direito, como estes jovens vão poder reconstruir o país no futuro?”

A situação também pouco os motiva a ficar. Kaelin, da Cruz Vermelha, diz que conseguir um trabalho em empresas locais é muito difícil, e os engenheiros recém-formados com quem trabalhou querem imigrar.

Levantamento feito pelo instituto Ipsos ouviu 1.400 jovens na Síria, no Líbano e na Alemanha. Deles, 62% tiveram de deixar suas casas devido à guerra, 55% tiveram a formação escolar interrompida e 42% perderam um familiar ou amigo próximo.

Anas Obaid, 32, deixou o país após ser capturado pelo EI e veio morar no Brasil em 2015. Jornalista, trabalhou em São Paulo lavando pratos e, depois, fabricando e vendendo perfumes. A pandemia de Covid-19 atrapalhou seus negócios, mas, para ele, tudo parece mais do mesmo. “É como se estivéssemos há dez anos em quarentena. Sempre há perigo, risco de perder o trabalho e falta de dinheiro”, afirma.

Obaid, que trabalhou em um campo de refugiados no Líbano, usa o tempo de confinamento no Brasil para estudar e escrever um livro sobre sua experiência com a guerra e o refúgio. “Tenho orgulho do nosso povo. Temos o pensamento de não deixar o passado atrapalhar nosso presente. Os jovens sírios chegam com muita vontade de trabalhar e de reconstruir a vida.”

Para os jovens ouvidos pela pesquisa da Ipsos, o maior desejo é o de estabilidade, opção escolhida por 65% dos entrevistados. Planos como formar uma família e voltar a estudar são bem menos citados.

Segundo a ONU, há 6,6 milhões de refugiados sírios espalhados em 130 países, embora a maioria tenha ido para nações vizinhas. Além disso, há mais 6,7 milhões de pessoas deslocadas dentro do próprio país.

De acordo com o Acnur, órgão da ONU para refugiados, cerca de 70% dos que deixam a Síria vivem na pobreza, e há alto risco de que descambem para o trabalho infantil. O casamento de meninas menores de 18 anos também tem crescido. A estimativa da agência é de que sejam necessários US$ 5,8 bilhões para cobrir as carências mínimas dos refugiados em 2021, somando os gastos das organizações que lá atuam.

Em 2020, no entanto, apenas pouco mais da metade do orçamento projetado foi atingido.

"Nessa situação, priorizam-se as coisas mais básicas, como saúde, alimentação e abrigo, e as ações para educação e geração de renda ficam para trás", diz Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil.

Com as dificuldades de viver como refugiado, muitos tentam voltar para casa, apesar dos riscos. Os pais de Obaid fizeram esse caminho e reencontraram a casa da família, nos arredores de Damasco, destruída.

“Meu pai ficou 40 anos melhorando a casa —e perdeu tudo. Roubaram até o piso. Agora, aos 74 anos, precisa recomeçar. Eles abriram uma loja e estão se virando. Mas meu pai mudou totalmente. Está sempre incomodado, preocupado, com medo de perder tudo de novo", conta. "Ainda tem um conflito aqui ou ali, alguns morrem, alguns são torturados.”

cadáver de criança pequena estendido na beira do mar
Em setembro de 2015, o corpo do menino sírio Alan Kurdi, 3, foi encontrado em uma praia da Turquia. Alan morreu afogado após o naufrágio de uma embarcação que atravessava o mar Mediterrâneo para chegar à Europa. A foto chamou atenção mundial para o drama das crianças sírias refugiadas - Nilufer Demir - 2.set.2015/Reuters

No último ano, a guerra na Síria teve poucos movimentos significativos além de embates no norte do país, que cessaram após um acordo entre Turquia e Rússia em março de 2020, dias antes de a pandemia paralisar o mundo. Não há números confiáveis, pois falta acesso a testes e a atendimento médico, mas agentes em campo relatam que houve piora na situação do coronavírus no país.

"Se uma família fica doente, muitas vezes só há dinheiro para comprar remédios para uma pessoa, e os outros ficam sem. A inflação alta dificulta as coisas", aponta Ghazi, da ONG Médicos Sem Fronteiras.

A Síria enfrentou, nos últimos meses, um agravamento da crise econômica. Na sexta (12), US$ 1 comprava 4.000 libras sírias no mercado paralelo, segundo a agência de notícias Reuters. Em junho de 2020, essa cotação era de 1 para 2.500. A crise no vizinho Líbano complicou ainda mais esse panorama. Com a desvalorização, vieram inflação e falta de produtos, incluindo pão e combustível.

O fim da crise é considerado distante, e, para tal, especialistas apontam que os países envolvidos na guerra precisam mudar a forma de agir. "As potências regionais têm a chave para decidir o futuro da Síria, mas não vejo nenhuma urgência por parte delas”, diz o professor Akkoyunlu. Ele avalia que as negociações em torno do acordo nuclear entre Irã e EUA, agora sob a Presidência de Joe Biden, podem incluir alguma mudança modesta de posição de Teerã sobre Damasco.

Um cenário provável é que a Síria se torne um país instável por décadas, como Afeganistão e Iraque, cujos conflitos internos não cessaram mesmo após diversas intervenções estrangeiras. E as demandas dos protestos de 2011, que incluíam menos corrupção e melhores serviços públicos, nunca foram atendidas.


Cronologia do conflito

2011

Protestos contra a detenção e tortura de crianças e jovens que fizeram pichação contra Assad se espalham pelo país e motivam uma onda de meses de manifestações contra o autoritarismo do governo. A repressão é forte.

Em julho, militares que deixaram o Exército anunciam a formação do Exército de Libertação Síria. Nos meses seguintes, começam combates com as forças do governo.

Em agosto, EUA, Reino Unido, França e Alemanha pedem a renúncia de Assad. Ele é alvo de sanções internacionais, mas China e Rússia barram medidas contra o governo sírio no Conselho de Segurança da ONU.

2012

No primeiro semestre, a ONU tenta mediar um cessar-fogo, mas o acordo é descumprido. A situação se repete várias vezes ao longo da guerra.

Em fevereiro, Assad faz um referendo para mudar a Constituição. A proposta é aprovada, mas os rebeldes a consideram ilegítima. Em julho, a Cruz Vermelha passa a classificar o conflito como guerra civil.

Forças rebeldes avançam e passam a controlar cidades, como Aleppo. Soldados do Hizbullah vão à Siria lutar do lado do governo.

2013

Em abril, jihadistas anunciam a criação do Estado Islâmico. O grupo terrorista consegue ocupar a cidade de Raqqa, além de várias partes da Síria e do Iraque, mas é combatido por outros grupos rebeldes.

Em agosto, Assad faz ataques com gás sarin contra rebeldes, o que gera pressão internacional, mas EUA e Reino Unido desistem de um ataque militar. Um acordo é feito para que o governo entregue suas armas químicas.

Em setembro, os EUA e uma coalizão internacional passam a fazer ataques aéreos contra o EI na Síria.

2014

EI declara a criação de um califado, em junho. Coalizão internacional reforça os ataques contra o grupo.

2015

Em maio, o EI domina Palmira, cidade onde havia monumentos da Antiguidade. O grupo destrói parte deles e divulga vídeos.

Em setembro, Rússia entra ativamente no conflito e passa a bombardear opositores de Assad, o que muda o jogo a favor do ditador.

2016

Governo Assad retoma controle de Aleppo, dominada por rebeldes desde 2012, e de Palmira.

Turquia faz acordo com a União Europeia para impedir que refugiados sírios sigam para a Europa.

2017

Em abril, forças do governo fazem ataques com gás em Idlib. Em resposta, EUA bombardeiam base militar síria e decidem ajudar os curdos a se armarem.

EI é expulso de Raqqa, considerada sua capital, em outubro.

2018

EUA, França e Reino Unido bombardeiam forças de Assad após novo ataque químico, em Duma.

Idlib se torna a última área sob controle total dos rebeldes, e o governo sírio começa uma ofensiva para atacar a cidade. A Turquia, no entanto, dá apoio aos rebeldes. Rússia e Turquia fazem um acordo para criar uma zona desmilitarizada.


2019

Em março, o EI perde Baguz, seu último reduto.

Forças de Assad invadem a área desmilitarizada para tentar retomar Idlib.

Em outubro, os EUA se retiram da Síria e deixam de dar apoio aos curdos, que foram seus aliados na luta contra o EI. Pouco depois, a Turquia lança uma operação militar contra militantes curdos na Síria. O governo turco diz que a operação busca criar uma área para receber refugiados sírios alocados na Turquia.


2020

Em fevereiro, após soldados turcos serem mortos na Síria, a tensão aumenta entre Rússia e Turquia, mas os países negociam um cessar-fogo em março.

A pandemia ganha força na Síria a partir do segundo semestre. País vive crise econômica acentuada, com queda histórica do valor da moeda local.

Em junho, os EUA anunciam novas e fortes sanções, capazes de gerar o congelamento de bens de qualquer pessoa ou empresa que faça negócios com a Síria em vários setores, incluindo construção e energia. No fim do ano, Israel faz ataques contra forças iranianas no país.


2021

Governo Biden ordena ataque contra estruturas militares na fronteira do Iraque, que seriam usadas por milícias do Irã.

Em março, a libra síria registra queda recorde: US$ 1 compra 4.000 libras no mercado paralelo. Em meados de 2020, a cotação era de 1 para 2.500.


Os lados do conflito:

Bashar al-Assad
Ditador da Síria, está no cargo desde 2000. Ele é filho de outro ditador, Hafez al-Assad, que governou de 1971 a 2000. Quase perdeu a guerra, mas seu governo controla atualmente cerca de 60% do país.

Curdos
Nação apátrida que tem cerca de 40 milhões de habitantes, espalhados por partes da Síria, da Turquia, do Irã e de outros países. Curdos integram a milícia YPG, que luta na Síria, e o PKK, partido que defende a independência de parte da Turquia. O governo turco luta contra o YPG para tentar enfraquecer o PKK.

Estado Islâmico
Grupo terrorista, chegou a dominar amplas faixas e cidades da Síria, mas foi derrotado. Embora sem território, segue tentando manter sua ideologia viva e eventualmente reivindica ataques terroristas.

HTS
O grupo, cuja sigla significa Organização pela Libertação do Levante, é considerado herdeiro da Al Qaeda na Síria e defende uma visão radical do Islã. Domina a região de Idlib.

SDF (Forças Democráticas da Síria)
Grupo que controla áreas do nordeste do país e é formado por diferentes milícias, incluindo o YPG. É adversário do SNA.

SNA
Antigo Exército Livre da Síria, é um grupo rebelde que luta ao lado de forças turcas. É adversário do SDF.


Envolvimento estrangeiro

Rússia
Apoia Assad e mudou o rumo da guerra ao fazer operações militares na Síria a partir de 2015.

Irã
Aliada de Assad, envia milícias para ajudar no combate aos rebeldes.

Hizbullah
Aliado de Assad, o grupo libanês é considerado terrorista pelos EUA, mas é também um partido político no Líbano.

Arábia Saudita
Deu apoio a grupos rebeldes contra Assad. O país é arquirrival do Irã, que apoia o ditador sírio.

Turquia
É contrária a Assad e aos curdos. Forças turcas se aliaram a outros grupos rebeldes e buscaram criar estruturas, no norte da Síria, para receber refugiados de volta.

Israel
Disputa a região das colinas de Golã com a Síria. Israel anexou a região em 1981, mas não obteve reconhecimento da maior parte da comunidade internacional. Tem feito bombardeios contra militares do Irã que atuam em território sírio.

Estados Unidos
Integrou uma coalizão internacional para combater o Estado Islâmico na Síria e fez alguns bombardeios pontuais contra forças de Assad.

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