Existe o delírio e existe a realidade. O primeiro está nas teorias conspiratórias do QAnon, o movimento extremista americano, e nos tuítes da direita brasileira. A realidade se pode encontrar em livros como "O Consentimento", recém-lançado no Brasil, e "La Familia Grande" (ainda sem tradução).
O QAnon alega que o Partido Democrata dos Estados Unidos, com apoio da indústria cinematográfica e das "elites globalistas", criou uma seita satânica dedicada ao sequestro, à tortura e ao abuso sexual de crianças. Para os radicais que orbitam em torno de Jair Bolsonaro e de Olavo de Carvalho, a legalização da pedofilia é mera questão de tempo no Brasil.
Tanto "O Consentimento" quanto "La Familia Grande" são livros de memórias publicados originalmente na França, no começo de 2020 e em janeiro deste ano. No primeiro, Vanessa Springora relata como aos 14 anos, na década de 1980, ela se tornou vítima do escritor Gabriel Matzneff —um nome respeitado do meio intelectual francês e também um pedófilo serial e impenitente. No segundo, a jurista Camille Kouchner revela como seu irmão sofreu na infância abuso sexual do padrasto, o celebrado cientista político Olivier Duhamel.
A comoção causada pelas duas obras foi grande o bastante para influir numa decisão política. No dia 15 de março, a França fixou pela primeira vez em sua legislação uma idade para a maioridade sexual. Quando a regra entrar em vigor, o sexo com crianças e adolescentes menores de 15 anos será tratado como estupro, com punição de até 20 anos de cadeia. Nenhum adulto poderá alegar que a relação foi "consentida".
"La Familia Grande" pôs em relevo um fato conhecido: o abuso de menores é pouco notificado, pois quase sempre acontece na família ou num círculo próximo de conhecidos. "O Consentimento" incriminou toda uma época. No ambiente culto em que Springora e Matzneff viviam, nenhum adulto soube proteger a menina, mesmo sendo notórias as preferências sexuais do escritor.
O livro apresenta duas razões para isso: o culto do artista, a quem não se aplicariam limitações normais, e o "espírito do tempo". "Lutar contra o aprisionamento dos desejos, contra todas as repressões, eram as palavras de ordem naquele período", escreve Springora.
Ela relembra como, na segunda metade da década de 1970, os mais reverenciados intelectuais franceses se mobilizaram para reduzir as punições a pedófilos e evitar que as leis fixassem a idade da maioridade sexual. Manifestos foram publicados. Entre as sete ou oito dezenas de signatários estavam nomes como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Roland Barthes, Louis Althusser, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Françoise Dolto (uma psicanalista especializada na infância).
Na verdade, a França não esteve isolada nesse movimento. Em outros países, como Estados Unidos e Inglaterra, também ganharam notoriedade grupos formados por sociólogos, cientistas políticos e psicólogos, que sustentavam que o "sexo intergeracional" poderia ser uma forma de liberação para crianças e adultos.
Ao contrário do que afirmam os cruzados da extrema direita, no entanto, essas ideias não ganharam tração nas últimas décadas. A pedofilia deixou de ser um tema comportamental para transformar-se em assunto médico —uma doença, como atestado pela Organização Mundial da Saúde. Isso implica buscar tratamento para os doentes, mas não desculpá-los quando põem em prática suas fantasias. Mais do que nunca, a atenção está direcionada às vítimas da violência sexual.
Os homens que abusam de crianças em "O Consentimento" e "La Familia Grande" são pessoas reais, que causam danos reais. Springora e Kouchner põem a angústia, o medo e a raiva que sentiram por anos a serviço de uma meta: expôr a insuportável violência contida até nas carícias mais "ternas" de um pedófilo, e desencadear uma ação política. A mudança na legislação francesa foi o resultado.
Em comparação, o pedófilo dos pesadelos de QAnon e bolsonaristas "ideológicos" é um ser abstrato: o mal absoluto, uma quimera. Os dois grupos também põem esse monstro a serviço de metas políticas. Mas o resultado, nesse caso, só interessa a eles próprios.
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