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Pandemia pode levar à emergência de outsiders na América Latina, avalia cientista política

Professora da Universidade Columbia aponta Brasil como principal exemplo de país que geriu mal a crise

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Rio de Janeiro

Mais gestão e menos polarização. São esses os aprendizados que governantes da América Latina devem levar da crise do coronavírus, afirma a argentina Maria Victoria Murillo, 53, diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Columbia, em Nova York.

Professora de ciências políticas, Murillo aponta o Brasil como “o exemplo óbvio” de um país no qual a polarização prejudicou intensamente o estabelecimento e o cumprimento de políticas públicas.

“Quando diferentes atores dizem coisas opostas, a população não confia em ninguém, não sabe o que fazer, e não há conformidade com os lockdowns”, diz, em entrevista por videoconferência, à Folha.

Murillo também afirma que a pandemia pode ter como consequência a fragmentação política, com a emergência de outsiders no continente. "As pessoas vão querer alguém que tome o controle no meio da crise", afirma a pesquisadora. "Há muita volatilidade eleitoral, muitos partidos, as pessoas não parecem se juntar em torno de uma opção. No Brasil agora você vê muito mais fragmentação."

Maria Victoria Murillo, diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia
Maria Victoria Murillo, diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia - Arquivo pessoal

Quais problemas estruturais da América Latina foram catalisados pela pandemia? A pandemia mostrou que a desigualdade não está relacionada apenas à renda, mas ao acesso à saúde, à educação. Já sabíamos disso, mas ficou mais gritante com o ensino remoto e com as pessoas morrendo sem acesso a oxigênio. Outra coisa que ficou mais gritante foi a fraqueza dos Estados latino-americanos. A pandemia mostrou a inabilidade de proteger a população. Outro problema antigo que ficou muito óbvio é o incrível tamanho da nossa economia informal. Foi um setor dramaticamente atingido pela pandemia. É algo que só vai piorar, não vejo uma solução. A crise de legitimidade das instituições democráticas também pode ter piorado. A desconfiança da população é muito alta, a administração da pandemia ficou sob suspeita de corrupção, há problemas com a vacinação.

Quais governos foram melhores e quais foram piores no enfrentamento à pandemia? Os governos que usamos como exemplo no início não tiveram um resultado tão bom como esperávamos. O Peru foi muito rápido na resposta, dedicou muitos recursos, foi muito rígido na quarentena e, ainda assim, foi um dos piores casos. O Estado é muito fraco, não teve habilidade para distribuir os recursos, o setor informal é muito grande, a população não tinha acesso a água encanada.

Mas há países que parecem ter ido pior, onde a solução foi totalmente polarizada. O Brasil é o exemplo óbvio. Quando diferentes atores dizem coisas opostas, a população não confia em ninguém, não sabe o que fazer, e não há conformidade com os lockdowns. Além disso, coloca o mundo em risco devido à emergência de novas mutações do vírus.

Diante desse cenário, quais lições os governo latino-americanos podem aprender com a crise? O dano que a polarização causa na criação de políticas públicas. A população não confia em discursos contrastantes, não sabe no que acreditar. Aprendemos que a polarização é muito prejudicial para o bem coletivo —e para a saúde pública em particular. A segunda coisa que aprendemos é que gestão e preparação são cruciais. A América Latina já teve muitas crises, mas parece ser pega de surpresa todas as vezes.

A terceira lição que a pandemia proporcionou é a importância da empatia das elites econômicas e políticas com a população, que está sofrendo com a pandemia de muitas formas diferentes.

Qual o impacto da Covid-19 para democracias que já vinham enfrentando protestos e instabilidade política? A região já enfrentava uma crise de representação democrática, com protestos nos países andinos, fechamento do Congresso peruano, tentativa de impeachment no Paraguai, golpe na Bolívia. O impacto inicial da pandemia foi colocar uma pausa nessa mobilização. Na maioria dos países, as pessoas passaram a seguir o presidente, [havia um sentimento de que] aquilo era uma guerra e que estávamos todos juntos. Mas a performance não foi boa, a pandemia durou muito, e as consequências econômicas foram muito importantes, então vimos um declínio no apoio aos presidentes.

Uma das reações é um aumento na fragmentação e no descontentamento com a classe política, e isso pode levar a instabilidades e oportunidades para outsiders emergirem. As pessoas vão querer alguém que tome o controle no meio da crise. Há muita volatilidade eleitoral, muitos partidos, as pessoas não parecem se juntar em torno de uma opção. No Brasil agora você vê muito mais fragmentação.

Para as próximas eleições no Brasil estão sendo aventados muitos candidatos, especialmente no campo da centro-direita. Jair Bolsonaro tem um problema de gestão política. Ele pensa que é um Donald Trump dos trópicos, mas Trump foi capaz de construir uma coalizão muito forte, de tomar o Partido Republicano. Não vejo o Bolsonaro com esse tipo de relações próximas, tomando partidos centrais. Por isso acho que há tantos outros [candidatos] dispostos a desafiá-lo.

As pesquisas mostram que após a pandemia a rejeição do Bolsonaro aumentou, mas ele parece ter um núcleo duro de apoiadores que gira em torno de 30% da população. O que poderia levar essas pessoas a abandoná-lo? É muito comum que um terço das pessoas realmente adore, seja leal ao líder. O que prejudica um líder populista é lançar mão de políticas públicas que façam parecer que ele perdeu sua autenticidade. As pessoas o seguem não devido a uma política particular, mas porque confiam que ele vai proteger seus interesses, que vai representá-los. Qualquer sinal de que esse não é o caso é prejudicial. Em geral os líderes populistas são bem cuidadosos com isso.

Como um populista, é possível que Bolsonaro se aproveite desse momento de crise para avançar com uma agenda autoritária? Por exemplo, ele editou alguns decretos que facilitam a compra de armas, e algumas pessoas sugeriram que seu objetivo seria armar apoiadores. Eu não gosto de armas, mas essa não é uma medida autoritária por si só. Se ele ultrapassasse os limites da autoridade do Executivo ou mandasse os militares para o Congresso, isso seria autoritário. A condição mais importante para um líder populista conseguir erodir a democracia é ter muito apoio popular.

Por não ser popular o suficiente e ter muitos desafios, há um incentivo para governadores, Suprema Corte e Congresso confrontarem Bolsonaro. Não parece que ele tenha muito poder. O único risco é que ele se sinta isolado e se volte para o Exército, que decida interromper a democracia.

Por que a América Latina continua flertando com a intervenção militar? Em 2019, Evo Morales renunciou na Bolívia após ter sido pressionado pelo Exército. Bolsonaro tem um governo cheio de militares e exalta a ditadura sempre que tem chance. Essa tentação tem sido mais fraca no Chile, Argentina e Uruguai, em parte porque nesses países a justiça de transição avançou mais. A sociedade tem uma ideia clara do custo da repressão militar. Há um aumento da dependência nos militares em muitos países, principalmente Brasil, Venezuela e México. Usar o Exército para combater o crime tem a consequência de abri-lo à corrupção, a influências de organizações criminosas.

A senhora acaba de publicar o livro “La Ley y La Trampa en América Latina” (a lei e a armadilha na América Latina), no qual defende que a fraqueza institucional não é um erro, mas uma estratégia política. Como isso funciona? Por exemplo, o Brasil começou a adotar políticas de proteção ambiental nos anos 1990. No papel era muito forte, mas não tinha muita aplicação. Quando o PT chega ao poder, há uma coalizão mais forte e um aumento no emprego das regras. Agora, com Bolsonaro, as mesmas instituições foram esvaziadas de recursos e funcionários, a aplicação se tornou mais irregular, e o Estado é indiferente. As leis criminais no Brasil são aplicadas dependendo se você é rico, pobre, preto, branco. A percepção das regras varia de acordo com o setor da população. Seria mais fácil hoje se alguém quisesse mudá-las, porque as pessoas não as percebem como legítimas.

Agora com o fim da Lava Jato, como a senhora vê o legado da operação para a democracia e as instituições? Foi uma oportunidade perdida. No início havia grande expectativa de que todos seriam iguais perante a lei, porque os ricos e poderosos também foram afetados. Mas ela foi aplicada de uma forma politizada, usada para processar Lula, com o juiz e os procuradores, como sabemos agora, quebrando a lei. As pessoas que esperavam que o Judiciário estivesse tratando todos de maneira igual descobriram que não era o caso. Isso torna muito mais difícil que no futuro elas confiem na Justiça de novo.


RAIO-X

Maria Victoria Murillo, 53
Diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos e professora do departamento de Ciências Políticas da Universidade Columbia (EUA), é doutora em Ciências Políticas pela Universidade Harvard (EUA). Também é autora de “La Ley y La Trampa en América Latina” e "Sindicatos, Coaliciones Partidarias y Reformas de Mercado en América Latina".

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