Policiais contrários ao golpe fogem de Mianmar enquanto repressão violenta prossegue

Agentes se recusam a cumprir ordens de atirar em manifestantes civis

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Samaan Lateef
Nova Déli

Quase 250 policiais mianmarenses e alguns agentes do Exército fugiram para a Índia depois de receberem ordens de oficiais superiores para atirar em manifestantes civis, após o golpe militar de fevereiro.

Ativistas alertam para uma potencial crise humanitária ao longo da fronteira entre Índia e Mianmar, com 1.643 km de extensão, na medida em que cidadãos mianmarenses em fuga se veem prensados entre a repressão violenta da junta militar e a resistência da Índia.

Eles precisam se esquivar de patrulhas militares e atravessar mata cerrada para chegar ao estado de Mizoram, no nordeste da Índia, onde grupos voluntários locais lhes fornecem alimentação e abrigo.

Militar de Mianmar que deixou o pais, em sacada de abrigo na Índia - Sajjad Hussain - 13.mar.21/AFP

Os estados do nordeste da Índia, incluindo Mizoram, dividem uma fronteira com Mianmar. Seus habitantes têm um parentesco estreito com os chins e outras comunidades mianmarenses.

Policiais e soldados do Exército de Mianmar que conversaram com a Folha contaram ter abandonado seus postos na quarta-feira e, juntos, escapado de patrulhas militares para atravessar a fronteira do estado indiano de Mizoram. Um policial, Thawng, que fugiu de Mandalay, em Mianmar, disse que os disparos da polícia contra manifestantes pró-democracia feriram gravemente muitos de seus parentes.

“Em alguns momentos me mandaram atirar em manifestantes que incluíam pessoas de minha família. Não aguentei a dor do meu povo. Fugi da delegacia durante a noite”, disse Thawng.

Mandalay, a segunda maior cidade de Mianmar, tem assistido a alguns dos piores casos de repressão contra os protestos pró-democracia. Neste domingo (14), Mianmar teve o dia de protestos mais letal desde o começo da crise atual. Foram ao menos 39 mortes em todo o país —38 manifestantes e um policial, segundo a AAPP, entidade de apoio aos presos políticos.

Assim, o total de mortes desde o início dos protestos subiu para 126.

Os ativistas passaram a atacar fábricas ligadas à China, pois acusam o país de dar apoio aos militares. Em alguns atos, os manifestantes usavam catapultas e atiravam pedras. Esta é considerada a segunda morte de policial registrada desde o início dos protestos.

A junta militar ameaçou com até 13 anos de prisão os cidadãos que ingressam no Movimento de Desobediência Civil (CDM, a sigla em inglês), que organiza os protestos em todo o país para derrubar o regime militar. Thawng disse que a população mianmarense quer ver a democracia restaurada, mas que a junta militar está determinada a calar a voz do povo.

“Recebemos ordens claras de caçar os dissidentes. Eu não queria sufocar a voz de minha própria gente. Então deixei meu emprego e minha família para trás, para evitar cumprir 13 anos de prisão”, disse ele.

A situação não tem sido fácil para os mianmarenses em fuga. Muitos estão encurralados na fronteira, sem comida. Na Índia, eles são interrogados pela polícia e têm dificuldade em encontrar alimentação e abrigo.

Thawng levou quatro dias para chegar à fronteira e atravessá-la, entrando em Mizoram. Para escapar dos guardas de fronteira indianos, precisou se esconder sob vegetação densa. Desde o golpe do dia 1º de fevereiro, quando o Exército de Mianmar derrubou o governo democraticamente eleito, as forças de segurança vêm usando força excessiva e letal contra manifestantes pró-democracia em todo o país.

Além das mortes, centenas de pessoas foram detidas por acusações arbitrárias dentro da violenta repressão nacional da junta militar aos manifestantes pró-democracia. Eles reivindicam o retorno ao governo civil e a libertação dos presos políticos, incluindo a líder civil Aung San Suu Kyi.

“Recebemos a ordem de atirar em civis. Eu me recusei a obedecer. Procurei a primeira oportunidade possível de sair de lá", disse a policial Keren, 27. Ela contou que militares e policiais vêm patrulhando bairros residenciais com violência, dando tiros no ar para intimidar a população.

“E eles lançam ataques seletivos, arrancando de suas casas pessoas suspeitas de fazerem parte do CDM”, contou. “Já ouvimos falar de várias pessoas detidas que morreram torturadas sob custódia.”

Acusado de instigar os atos contra a junta militar, outro policial escapou de várias blitze e chegou à Índia na semana passada. Está hospedado com parentes em Mizoram e procura mobilizar apoio ao CDM desde o país vizinho. “Farei todo o possível para combatê-los de modo não violento a partir daqui”, disse o agente, sob condição de anonimato.

Na segunda-feira (8), o Ministério do Interior indiano pediu ao Exército de Mianmar que impeça outros mianmarenses de atravessar a fronteira, afastando cidadãos que tentam fugir do país.

As autoridades mianmarenses pediram ao governo indiano para enviar de volta oito policiais que pediram refúgio na Índia, com suas famílias, após o golpe militar.

Lalnunmawia Pautu, secretário-geral da MZP (Mizo Zirlai Pawl), associação estudantil com sede em Mizoram, disse que dezenas de policiais, mulheres e crianças mianmarenses ficaram isolados na fronteira depois de as estradas serem bloqueadas por guardas de segurança indianos.

“Estão isolados na selva remota, sem comida. Estamos tentando facilitar a entrada deles no país, por meio dos habitantes de vilarejos da região”, disse Pautu. Segundo ele, mais pessoas estão tentando atravessar a fronteira indiana, mas a recusa do governo indiano em recebê-los pode desencadear uma crise humanitária, na medida em que a repressão militar violenta em Mianmar não tem diminuído.

freira ajoelhada no asfalto com os braços abertos na frente da polícia
Freira implora de joelhos para que soldados não atirem contra manifestantes em Mianmar - Handout/Myitkyina News Journal - 8.mar.2021/AFP

O ministro-chefe de Mizoram, Zoramthanga, anunciou que por razões humanitárias seu governo oferecerá abrigo e outros tipos de assistência aos refugiados mianmarenses, desafiando a decisão anunciada por Nova Déli, e entidades de defesa dos direitos humanos estão exortando o governo indiano a permitir a permanência na Índia de policiais mianmarenses que fugiram de seu país.

“Devido ao golpe militar e à violência brutal das forças de segurança contra civis, o povo de Mianmar está sofrendo uma crise humanitária complexa e crescente em muitas partes do país”, disse o secretário do Departamento de Segurança Interna dos EUA, Alejandro Mayorkas.

“A repressão cada vez mais brutal dos militares após o golpe coloca em risco grave quaisquer mianmarenses que queiram voltar a seu país”, disse à Folha a diretora para o sul da Ásia da ONG Human Rights Watch, Meenakshi Ganguly. “Em vez de colocar mais vidas em risco, a Índia deveria somar-se a outros governos e pressionar a junta militar a restaurar o governo democrático em Mianmar.”

“Os militares mianmarenses cometem abusos há muito tempo e estão ainda mais desregrados agora que estão de volta ao poder. O governo indiano deveria cumprir suas obrigações internacionais e proteger aqueles que precisam de refúgio dentro de suas fronteiras.”


CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

  • 1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
  • 1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
  • 1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
  • 1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
  • 1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
  • 1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
  • 1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
  • 2008: Assembleia aprova nova Constituição
  • 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
  • 2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
  • 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
  • 2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
  • 2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
  • 2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado
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