Descrição de chapéu Portugal

Remoção de símbolos do período colonial divide portugueses

Deputado defende demolição do Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, que exalta figuras da Era das Navegações

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Lisboa

A remoção dos brasões das ex-colônias de Portugal da chamada praça do Império, pretendida pela Câmara Municipal (equivalente à prefeitura) de Lisboa, gerou uma acalorada discussão sobre o legado colonial do país.

A ala descontente com a medida tratou de dizer que Portugal não tem de se envergonhar de seu passado e acusou o município, comandado pelo socialista Fernando Medina, de tentar reescrever a história.

Vários políticos resolveram entrar publicamente no debate, e dois ex-presidentes da República, Aníbal Cavaco Silva (2006-2016) e António Ramalho Eanes (1976-1986), afirmaram ser contrários à saída dos brasões.

Brasões florais da praça do Império, em Lisboa
Brasões florais da praça do Império, em Lisboa - Paulo Calado - 3.abril.2020/Cofina

A justificativa oficial é a recuperação do projeto arquitetônico original da praça, onde os brasões (feitos com uma dispendiosa técnica de jardinagem agora em desuso) não existiam.

O assunto ganhou proporções ainda maiores após, em um artigo, o deputado Ascenso Simões, do Partido Socialista (que governa o país) defender também a demolição de um dos principais cartões-postais da cidade: o Padrão dos Descobrimentos.

Idealizada em 1940 para uma exposição que glorificava as conquistas portuguesas, a obra reúne esculturas das principais figuras da Era das Navegações, incluindo Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães.

A deputada Joacine Katar Moreira (sem partido), nascida na Guiné-Bissau (ex-colônia portuguesa), gerou ainda mais polêmica ao publicar no Twitter uma imagem em que o monumento aparece levantando voo, carregado por foguetes.

A repercussão da morte de um antigo combatente da guerra colonial, o tenente-coronel Marcelino da Mata, militar mais condecorado da história do Exército de Portugal, também contribuiu para fomentar a discussão.

Um dos principais ativistas do movimento antirracista no país, Mamadou Ba criticou o Parlamento por um voto de pesar para o “sanguinário Marcelino da Mata” e chamou o militar de criminoso de guerra.

Começou então a circular uma petição online, que obteve mais de 15 mil assinaturas, exigindo que o ativista, que nasceu no Senegal, mas tem nacionalidade portuguesa, fosse deportado.

Em 2020, Ba foi alvo de diversas ameaças, recebendo até um ultimato para abandonar Portugal assinado por um grupo extremista de direita.

Embora a independência do Brasil esteja prestes a completar 199 anos, a separação das colônias portuguesas na África aconteceu apenas na década de 1970, com ligação direta ao movimento que pôs fim à ditadura do Estado Novo criada por António Salazar (1889-1970).

A glorificação das conquistas ultramarinas de Portugal foi justamente um dos principais pilares de propaganda do regime salazarista, que apelava às glórias do passado para construir uma noção de ufanismo patriótico.

Padrão dos Descobrimentos, um dos principais cartões-postais de Lisboa
Padrão dos Descobrimentos, um dos principais cartões-postais de Lisboa - Lalo de Almeida - 7.nov.2017/Folhapress

Na avaliação da historiadora Raquel Varela, professora da Universidade Nova de Lisboa, as polêmicas em torno dos símbolos do colonialismo refletem a falta de conhecimento dos portugueses, além da ausência de um debate amplo sobre o papel de Portugal no conflito e na exploração de outros países.

“O país e o Estado português nunca se deitaram no divã para pensar a sua história colonial. Isso cria uma série de mitos à volta desse passado colonial e faz com que as pessoas assumam que têm um conhecimento que na verdade elas não têm sobre o passado”, afirma.

“Muitos portugueses conhecem o massacre da UPA [União das Populações de Angola, em 15 de março de 1961], um massacre bárbaro de negros contra brancos, mas esquecem que ele foi uma resposta a um outro massacre, de trabalhadores forçados que estavam em greve, em janeiro de 1961, no norte de Angola, em uma companhia chamada Cotonang”, exemplifica a historiadora.

Já na avaliação do cientista político João Pereira Coutinho, professor da Universidade Católica Portuguesa e colunista da Folha, conhecimento sobre o passado colonial não é algo que falte aos portugueses.

“Eu confesso-me espantado com as polêmicas sobre o passado que tenho visto, porque eu não conheço ninguém que tenha um conhecimento mínimo da história de Portugal que já não saiba que uma parte dessa história foi feita com violência e com barbárie. Ninguém, com o mínimo de informação, desconhece isso”, avalia.

Em entrevista ao jornal Público na semana passada, o primeiro-ministro português, António Costa, se disse bastante preocupado com as guerras culturais em torno do racismo e da memória histórica.

O premiê criticou tentativas de “diabolizar” o passado de Portugal.

“Um país que, ao longo dos séculos, por falta de população, foi capaz de se miscigenar pelo mundo e que desenvolveu uma capacidade grande de diálogo intercultural, inter-religioso, que não vale a pena endeusar como tendo sido imune às barbaridades que todo o colonialismo comporta, mas também não vale a pena diabolizar como tenho visto, até por camaradas meus que acham que o monumento aos Descobrimentos devia ser destruído. Creio que se está abrindo de uma forma artificial uma fratura perigosa para a nossa identidade nacional, para a nossa relação com o mundo”, completou.

As discussões em Portugal se inserem em um cenário mais amplo, em que antigas metrópoles europeias se veem obrigadas a encarar as cicatrizes do legado colonial.

Por enquanto, as respostas têm sido em diferentes tons. A Bélgica removeu estátuas e está rebatizando ruas que faziam homenagem ao rei Leopoldo 2º, famoso por seu governo sanguinário no Congo Belga.

O presidente francês, Emmanuel Macron, recebeu em janeiro um relatório especial sobre a atuação de seu país na história da guerra da Argélia. Embora o chefe de Estado tenha se recusado a pedir desculpas pelo conflito, fez um gesto simbólico nesta semana: reconheceu oficialmente que o ativista da independência Ali Boumendjel foi torturado e morto pelo Exército francês em 1957. Até agora, a versão oficial era de suicídio.

Na avaliação de Coutinho, a efervescência das discussões sobre raça e colonização em outros países é uma das razões para o crescimento desses debates em Portugal. “As modas acadêmicas, digamos assim, chegam a Portugal sempre com atraso. Eu acho que há uma certa importação das discussões da academia americana e da academia inglesa. É um mecanismo mimético, digamos assim.”

Dizendo-se a favor de que a sociedade “discuta tudo, sem tabus”, o professor alerta para os perigos de reduzir países a um simples aspecto de seus passados.

“Será, por exemplo, que nós podemos dizer, olhando para a Alemanha, que ela pode ser definida apenas pelo Holocausto? A história é um processo complexo, feito de luzes e de sombras. Será que se pode olhar para a história de Portugal e dizer que é apenas escravatura? E o resto? E Camões, Saramago e Pessoa? E as técnicas, os processos científicos, os séculos 16 e 17?”, completa.

A inauguração de um memorial ao tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, prevista para os próximos meses, deve acender ainda mais o debate sobre colonização e raça no país.

Assinada pelo artista angolano Kiluanji Kia Henda, a obra “Plantação - Prosperidade e Pesadelo”, uma enorme instalação com 540 canas-de-açúcar em alumínio preto, está sendo montada em uma das zonas mais turísticas de Lisboa. ​

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