Repressão deixa mais 12 mortos em Mianmar, enquanto militares falam em 'democracia autêntica'

Conselho da ONU chega a consenso contra violência, mas retira classificação de golpe a pedido de China e Rússia

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Rangoon (Mianmar) | AFP e Reuters

O porta-voz da junta militar que assumiu o poder em Mianmar após o golpe de Estado em 1º de fevereiro disse nesta quinta (11) que o país caminha para uma "democracia autêntica" e que a comunidade internacional não tem com o que se preocupar, a despeito das milhares de pessoas que têm ido às ruas contra as Forças Armadas.

No mesmo dia, ao menos 12 pessoas foram mortas pelas forças de segurança ao protestarem contra a ditadura, elevando o número de vítimas para mais de 70, de acordo com a Organização das Nações Unidas —um especialista do órgão acusou o regime de assassinatos, tortura e perseguição que podem ser considerados crimes contra a humanidade.

Os militares mantêm o argumento de que a polícia e o Exército agem com "extrema moderação" ao lidar com o que eles descrevem como "manifestantes rebeldes". Em suas versões, são os participantes dos protestos que têm atacado a polícia com o objetivo de prejudicar a segurança e a estabilidade nacional.

Familiares durante funeral de ex-parlamentar morto sob custódia dos militares em Mianmar - 11.mar.21/Reuters

Entidades de defesa de direitos humanos e relatos de testemunhas, no entanto, contam uma história diferente. A Anistia Internacional acusa os militares de usarem táticas de batalha e força letal contra civis desarmados "de forma planejada, premeditada e coordenada".

Para a entidade, as mortes de manifestantes são execuções extrajudiciais. "Estas não são ações de oficiais sobrecarregados tomando decisões ruins", disse Joanne Mariner, diretora de resposta a crises da Anistia Internacional. "São comandantes que não demonstram arrependimento, já implicados em crimes contra a humanidade, deslocando suas tropas e seus métodos assassinos abertamente."

O general Zaw Min Tun, porta-voz da junta militar, afirmou em entrevista coletiva nesta quinta que as forças de segurança agiram com disciplina e usaram a força apenas quando necessário.

Segundo ele, os países ocidentais —que acumulam críticas aos atos dos militares mianmarenses— estão fazendo suposições incorretas, e os protestos, que são diários há mais de um mês, não configuram uma situação de preocupação para a comunidade internacional.

Zaw Min Tun também fez novas acusações contra a líder civil de Mianmar deposta no dia do golpe, Aung San Suu Kyi. De acordo com o general, ela recebeu pelo menos US$ 600 mil (R$ 3,4 milhões) e 11 quilos de ouro em subornos enquanto estava no governo.

A conselheira de Estado responde por quatro acusações criminais. As duas primeiras, apresentadas ainda na semana do golpe, foram de importação ilegal de seis walkie-talkies e de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus.

As outras duas, formalizadas no início deste mês, são por ter supostamente violado uma lei de telecomunicações que estipula licenças para equipamentos e outra por publicar informações que podem "causar medo ou alarme", prática vetada pelo código penal que data do período colonial.

Ainda de acordo com o porta-voz, o presidente Win Myint, também deposto e detido após a tomada de poder pelo Exército, e vários de seus ministros se envolveram em casos de corrupção. Myint, inclusive, teria pressionado a comissão eleitoral do país a se omitir em relação a irregularidades apontadas pelos militares no último pleito.

A Liga Nacional pela Democracia (LND), partido de Suu Kyi e Myint, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas eleições realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras.

O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para a tomada de poder. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa. Dizem ainda que agiram de acordo com a Constituição e que a maior parte da população apoia sua conduta, acusando manifestantes de incitarem a violência.

Nesta quarta-feira (10), os 15 países-membros do Conselho de Segurança da ONU chegaram a um consenso para condenar a violência e pedir moderação às Forças Armadas, mas retiraram a classificação da tomada de poder como um golpe devido à oposição ao uso do termo por China, Rússia, Índia e Vietnã.

O secretário-geral da ONU, o português António Guterres, disse esperar que a declaração do conselho leve os militares a perceberem que é "absolutamente essencial" que todos os prisioneiros sejam libertados e que os resultados das eleições de novembro sejam respeitados.

Os EUA anunciaram pouco depois o congelamento de quaisquer bens que os dois filhos do chefe da junta militar de Mianmar, o general Min Aung Hlaing, possam ter em território americano. A medida, segundo o governo de Joe Biden, é "uma resposta ao golpe" e à "matança brutal de manifestantes pacíficos".


CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

  • 1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
  • 1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
  • 1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
  • 1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
  • 1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
  • 1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
  • 1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
  • 2008: Assembleia aprova nova Constituição
  • 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
  • 2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
  • 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
  • 2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
  • 2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
  • 2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado
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