Descrição de chapéu RFI África terrorismo

'Eles chegam desfigurados e anêmicos', diz missionário brasileiro que atende deslocados no norte de Moçambique

Padre Edegard Silva Filho trabalha com 300 famílias em ginásio de Pemba, capital de Cabo Delgado, e diz que relatos são dramáticos e tristes

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Elcio Ramalho
RFI

Sem previsão de quando poderão voltar para suas casas nas aldeias do norte de Moçambique, alvos de ataques de grupos armados e jihadistas no fim de março, milhares de deslocados são atendidos por organizações humanitárias e missões religiosas como a da Congregação Nossa Senhora de Salette, da qual faz parte o padre brasileiro Edegard Silva Filho.

Atualmente, o missionário trabalha no atendimento de 300 famílias instaladas em um ginásio de esportes de Pemba, a capital da província de Cabo Delgado, para onde fugiram moradores de aldeias que foram atacadas por grupos armados. Segundo a ONU, atualmente cerca de 600 mil pessoas estão deslocadas devido à recente onda de violência promovida por jihadistas e grupos armados.

Mulher descansa com seu bebê em ginásio de esportes na cidade de Pemba, capital da província de Cabo Delgado, que foi convertido em abrigo para deslocados devido ao conflito na região
Mulher descansa com seu bebê em ginásio de esportes na cidade de Pemba, capital da província de Cabo Delgado, que foi convertido em abrigo para deslocados devido ao conflito na região - Alfredo Zuniga - 2.abr.21/AFP

Os relatos que são feitos desse período de fuga e esconderijo são dramáticos e tristes, segundo o religioso brasileiro. "Quando acontece um ataque, a população foge para o mato, e os moradores não levam nada pois são tomados de surpresa. Algumas famílias até já haviam planejado como deveria ser a fuga e para onde deveriam ir. Eles ficam no mato em condições precárias, até conseguir meios de chegar à cidade", conta.

"Quando eles chegam, a fisionomia diz tudo: rosto desfigurado, com sede e fome. Muitos chegam doentes porque no caminho, no mato, bebem água, o que encontram. Nem sempre é uma água segura, às vezes prejudica a saúde", relata o religioso.

"E praticamente não há nada para comer. Sobrevivem com folhas e com o que encontram no mato. Eles chegam anêmicos e fracos. Nesse momento entra a ação humanitária, entre as quais a nossa missão", conta em referência ao trabalho dos diversos missionários em conjunto com a Caritas de Diocese de Pemba.

Padre Edegard chegou a Moçambique há cerca de três anos para trabalhar na região norte do país, na província de Cabo Delgado. Desde então, tem testemunhado e denunciado a onda de violência, que prefere chamar de "guerra". "Há três anos viemos acompanhando essa guerra", diz ele. O religioso atuava em Muidumbe, distrito onde vivia cerca de 79 mil habitantes.

Com o ataque, os religiosos interromperam os preparativos para comemoração do centenário da presença da missão, previsto para 2024. "Não temos mais perspectivas de saber se será possível", lamenta.

Segundo o padre, de um conjunto de 26 aldeias da região norte da província de Cabo Delgado, 18 delas foram atacadas nos últimos anos. O primeiro ataque à comunidade de Criação, lembra com precisão, foi em 7 de novembro de 2019. "Desde então, nunca mais tivemos paz, foram ataques sucessivos", disse. "Houve mortes e sequestros", recorda-se. "Na aldeia de Chitache, 52 jovens foram assassinados. Estamos esperando essa situação terminar para que haja uma investigação detalhada", diz.

"Na nossa missão, que fica na aldeia de Muambula, que tinha uma boa infraestrutura, com escola para 3.000 alunos, uma emissora de rádio comunitária, creche e ambulatório, tudo foi destruído", lamenta. "Há esforço do governo de controlar, mas sempre somos surpreendidos com novos ataques. Mesmo após o ataque à Palma, sede do distrito, outras aldeias foram atacadas. O único distrito que não foi atacado é Mueda, onde fica o quartel do Exército e há um aparato militar", afirma.

Fim de uma vida simples e de paz

Segundo o padre Edegard, há tempos sua diocese vem denunciando a situação de violência, seja por meio da voz oficial da igreja, de pastores ou missionários.

"Nas nossas celebrações sempre alertávamos e também fazíamos as denúncias chegar às redes sociais. Fomos presenciando o aumento da violência até nos recursos usados nos ataques. Eles foram modificando. No início, os ataques eram com catanas, um instrumento de trabalho aqui do pessoal, uma espécie de facão usado pelos agricultores. Hoje são armas pesadas. O último ataque em Palma, dizem, foi com armas pesadas e sofisticadas", afirma, em referência às ofensivas do mês de março.

De acordo com o religioso, desde a descoberta de campos de gás e a instalação de empresas, como a multinacional francesa Total, a vida dos moradores mudou. "Nas aldeias, a população vive da agricultura familiar, sobretudo do milho, ingrediente básico da alimentação local. Essa vida simples foi interrompida no dia 5 de outubro de 2017, com o primeiro ataque no distrito de Mocimboa da Praia. Nunca mais tivemos paz nesta região. Todos tivemos que mudar horários de missa, de escola, que teve que interromper as aulas noturnas. Depois das 17h, ninguém circulava mais. Mudou totalmente o ritmo daquela vida pacata, simples e de paz que acontecia nas aldeias", relata.

Ele destaca ainda a importância da presença de organizações humanitárias no local para socorrer os moradores e os desalojados. Mas alerta que as demandas são muito maiores do que as possibilidades das organizações, tanto do ponto de vista material quanto de pessoal para fazer o atendimento à população.

"Precisamos de apoio financeiro para divulgar essa situação. Pedimos a Deus que cesse essa guerra e se criem canais de negociação. Quem mais sofre é a população mais pobre e inocente que não tem nada a ver com as motivações que levam a essa guerra. Ouvimos que são vários fatores, não apenas do Estado Islâmico, do fundamentalismo regilioso, mas também há questões econômicas e políticas nesta guerra."

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