Descrição de chapéu The New York Times

Exército americano estuda usar DNA para identificar soldados desconhecidos

Técnicas usadas para revelar autores de crimes podem ajudar a identificar mortos na 2ª Guerra Mundial

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Dave Philipps
The New York Times

Um cemitério militar americano ao sul de Roma possui um túmulo contendo restos mortais que se acredita serem de um jovem soldado do Exército chamado Melton Futch. Mas a lápide de mármore branco diz apenas “aqui jaz em glória honrosa um camarada de armas conhecido unicamente por Deus”.

Trata-se de um dos cerca de 6.000 túmulos de militares americanos mortos na Segunda Guerra que as Forças Armadas não conseguiram identificar com a tecnologia da época. Hoje, é claro, existe a análise de DNA. Mesmo no caso de ossos que podem ter se deteriorado ao longo de décadas, técnicas cada vez mais sofisticadas possibilitam obter um perfil genômico único que pode confirmar a identidade do morto.

Pesquisadoras analisam dados de DNA em laboratório na base da Força Aérea dos EUA em Dover - Erin Schaff/The New York Times

Mas, para funcionar, a identificação por DNA requer uma amostra de um parente consanguíneo para fazer a comparação. E, no caso de muitos dos mortos da Segunda Guerra Mundial, o Exército não conseguiu localizar irmãos, pais, filhos, nem sequer primos distantes. Nesses casos, a despeito dos avanços notáveis, o Exército acaba no mesmo beco sem saída em que terminou nos anos 1940.

Assim, o Departamento de Defesa está considerando a possibilidade de tentar uma abordagem muito diferente: em vez de localizar parentes e então fazer a comparação do DNA, pesquisadores militares querem usar o DNA para localizar os parentes.

É uma tática que nos últimos anos ajudou a elucidar centenas de casos de homicídio cometidos muito tempo atrás, incluindo o do assassino serial conhecido como Golden State Killer. Investigadores pegam DNA encontrado nos locais de crimes e o carregam em bancos públicos de dados genéticos, na esperança de encontrar correspondências em árvores genealógicas que apontem para um indivíduo determinado.

“A tecnologia já existe –só precisamos desenvolver a política pública de fazer uso dela”, disse Timothy McMahon, diretor da seção de identificação por DNA de restos humanos do Sistema de Medicina Legal das Forças Armadas.

Há décadas o Departamento de Defesa trava um esforço global para recuperar e identificar os restos mortais de todos os militares desaparecidos desde o início da Segunda Guerra Mundial.

Num primeiro momento buscou-se localizar restos mortais ainda não recuperados de locais de acidentes aéreos remotos, navios afundados, trincheiras na selva cobertas de vegetação e locais semelhantes. Mas, com o desenvolvimento dos testes de DNA, o departamento vem trabalhando cada vez mais com os milhares de corpos que foram recuperados muito tempo atrás e sepultados sem ser identificados.

O uso de DNA como é feito em casos de homicídio arquivados mas não elucidados tem o potencial de resolver casos que frustram pesquisadores há anos, incluindo o de Melton Futch, filho pobre de um trabalhador numa serraria que mentiu sobre sua idade para conseguir alistar-se aos 16 anos.

Técnico exibe amostras de ossos, de onde são retiradas os dados de DNA, em laboratório em Dover, EUA - Erin Schaff/The New York Times

Numa noite fria de dezembro de 1944, Futch, então com 20 anos, vestiu um casaco de lã verde e arrastou-se furtivamente para uma colina no norte da Itália, como parte de um grupo que esperava surpreender o inimigo. Mas os alemães estavam à espera deles.

O som das metralhadoras encheu a escuridão gelada. Os americanos recuaram. Quando se reagruparam no pé do morro, Futch não estava entre eles.

Após a guerra, moradores locais toparam com a ossada de um soldado na encosta da colina, ainda vestido no casaco de lã, em cujos bolsos estavam a caderneta de endereços de Futch e uma carta de sua mulher. Mas a identificação do morto, que parecia ser simples, não demorou a se complicar.

Há décadas o Exército inicia o trabalho de identificação com métodos tradicionais como a medição dos ossos, o estudo de fichas odontológicas antigas e de relatórios de batalha mimeografados. Mesmo depois do surgimento dos testes de DNA, esse método tipicamente só é utilizado ao final do processo, para confirmar uma identificação provisória.

No caso de Futch, os peritos do Exército não encontraram uma correspondência entre os dentes do morto e a ficha odontológica do soldado, e, embora a ossada sugerisse um soldado da idade correta e de origem africana, o Exército estimou que ela pertencera a um homem vários centímetros mais alto. Sem conseguir determinar ao certo de quem era a ossada, o Exército a sepultou no cemitério perto de Roma.

O caso foi reaberto alguns anos atrás pela agência do Departamento de Defesa responsável pela localização de prisioneiros de guerra e desaparecidos em ação militar, que tentou localizar um parente de Futch para fazer a comparação do DNA. Mas o soldado não tinha irmãos ou filhos. Os genealogistas não puderam encontrar sequer um primo de segundo grau.

As normas da agência não permitem a exumação de um cadáver se não houve pelo menos 50% de chances de que os restos mortais sejam identificados. No caso de Futch, a ausência de uma amostra de DNA de um parente impede a agência de exumar os ossos e testá-los.

Críticos da abordagem atual —um processo demorado e caro que, com um orçamento de mais de US$ 150 milhões (cerca de R$ 840 milhões), levou a menos de 200 identificações em um ano— dizem que o governo deveria abrir mão da regra dos 50%, obter amostras de DNA de todos os restos mortais de militares desconhecidos e começar a analisá-los em todos os bancos de dados de DNA possíveis.

“No momento, estão trabalhando de trás para diante. A política seguida está atrapalhando a ciência”, comentou Ed Huffine, que na década de 1990 chefiou a testagem de restos mortais de guerras passadas no Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas e depois passou anos trabalhando com a identificação de vítimas de eventos civis que deixaram vítimas em massa.

Huffne disse que os arquivos odontológicos antigos e outros documentos dos anos 1940 que servem de ponto de partida para o Exército hoje podem criar problemas porque em muitos casos estão cheios de erros. Mas começar com o DNA produz resultados confiáveis rapidamente. Isso já foi feito em lugares como Bósnia e Argentina para identificar mortos desconhecidos em grande número.

O Exército era racialmente segregado na Segunda Guerra Mundial, e Futch fazia parte de sua única unidade de combatentes negros, a 92ª Divisão de Infantaria, apelidada de Buffalo Soldiers.

A divisão desembarcou em Nápoles e avançou para o norte ao lado de unidades de soldados brancos, até alcançar as defesas fortificadas alemãs conhecidas como a Linha Gótica, nas montanhas. Os combates intensos ali deixaram mais de 500 soldados da divisão mortos e centenas de outros desaparecidos.

Após a guerra, 53 corpos não foram identificados. Esses 53 remanescentes foram sepultados na Itália como “desconhecidos”. Em 2014 o Departamento de Defesa iniciou um projeto para descobrir os nomes dos 53, mas até agora identificou apenas um punhado deles, e os esforços para localizar suas famílias em muitos casos foram infrutíferos.

“É muito mais difícil”, disse a genealogista Megan Smolenyak, que rastreou milhares de árvores genealógicas para a agência. Ela disse que, após um século de migração, os familiares dos soldados negros em muitos casos estão espalhados e podem aparecer pouco no rastro documental de cadastros de eleitores, documentos imobiliários e notícias publicadas por jornais locais.

“Afro-americanos simplesmente estão ausentes dos registros, mesmo que estejam em uma comunidade há centenas de anos. Eles simplesmente não aparecem”, disse ela.

Futch foi filho único de um casal que se mudou da zona rural da Geórgia para a Flórida para buscar trabalho numa serraria e numa fábrica de aguarrás. Eles não possuíam nenhum imóvel e eram analfabetos, segundo dados do censo. Os avós de Futch foram escravos.

No caso da ossada encontrada com a caderneta de endereços de Futch, os investigadores partiram de uma lista de 44 nomes possíveis de homens mortos naquela região da Itália. Baseados na estatura de cada homem e no último local onde ele foi visto, excluíram 36 nomes.

As fichas dentárias excluíram outros sete, deixando apenas uma possibilidade: Melton Futch. Mas o caso está parado até que o Pentágono consiga localizar um parente de Futch ou altere suas regras para permitir testes de DNA primeiro. McMahon diz que a mudança na política está chegando. A ideia de identificar os soldados desconhecidos do mesmo modo como a polícia elucidou o caso do Golden State Killer é tão convincente, comentou, que “acho que veremos isso acontecer no futuro próximo”.

Tradução de Clara Allain

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