Descrição de chapéu refugiados

Goiana lidera luta por regularização de imigrantes na Bélgica

Estimativa é de 150 mil pessoas em situação irregular no país, um terço dos quais vindo do Brasil

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Bruxelas

Toda manhã, a brasileira Maria José Freire, 49, faz faxinas em Bruxelas, onde vive. À tarde, atende como esteticista. Finda a jornada, desde 31 de janeiro segue para uma igreja do século 13 (reconstruída no 17) no centro histórico de Bruxelas.

Maria José não vai rezar, mas continuar o trabalho, dessa vez como voluntária. Na igreja de São João Batista em Béguinage, 121 imigrantes irregulares acampam há dois meses, na tentativa de abrir com o governo belga um canal de negociação.

Coordenadora do Coletivo Brasileiro dos Sem-Papéis, ela chegou à Bélgica pela primeira vez em 1999, em busca de melhores condições de vida.

Deixou em Goiânia, com a mãe, três crianças —a mais velha com 11 anos e o menor com 7 meses. Quinze dias depois, conseguiu um trabalho como babá (de um bebê belga da mesma idade de seu filho) e ficou.

Rosto de moça de cabelos lisos castanhos, com um leve sorriso
A goiana Maria José Freire, 49, no apartamento em que mora em Bruxelas - Sans-papiers TV/Reprodução

Foi em 2004, já com seus filhos na Bélgica, que ela se aproximou das entidades que lutam por regularização dos imigrantes, reunidas na Coordenação dos Sem-Papéis da Bélgica. Passou a organizar passeatas brasileiras, com batucada e letras em francês pregando a mensagem principal: "Não somos invisíveis; estamos na sua casa, no seu trabalho, somos a sua sociedade multicultural".

Não há números precisos sobre quantos são os imigrantes em situação irregular na Bélgica, mas calcula-se que passem dos 150 mil, dos quais um terço é brasileiro, segundo Juliana Santos Wahlgren, cientista política brasileira que assessora a Comissão Europeia em casos de integração e asilo.

Em levantamento feito na década passada pelo Departamento de Migração da Bélgica, os brasileiros eram a maior comunidade de indocumentados no país.

À frente da Revibra (entidade de prevenção à violência contra a mulher fundada por ela), Wahlgren traçou no ano passado um perfil desses imigrantes, a partir de 497 questionários respondidos por maiores de 18 anos que tentam se regulamentar.

A maioria é jovem —30% têm de 18 a 28 anos, e 40%, de 29 a 39 anos—, e 66% são mulheres. O mais comum é que os sem-papéis estejam na Bélgica há no mínimo cinco anos, e 60% das famílias têm filhos.

Wahlgren ressalva que a enquete, feita em parceria com o coletivo brasileiro, não conseguiu alcançar os transexuais, grupo que tem uma composição diferente. As primeiras ondas de imigração para a Bélgica são de 1980, mas o motivo mudou desde então. Na época, eram principalmente os que fugiam da ditadura militar. Agora, a razão é econômica, mostra o levantamento da Revibra.

Trabalho é a justificativa dada por 77% dos entrevistados para terem deixado o Brasil; outros 20% disseram ter vindo se reunir com a família. Pesquisa anterior, feita em 2006 pela entidade ASBL Abraço, mostrou que a maioria deles saiu de Uberlândia (MG) ou de Goiânia, como Maria José.

Muitos começam em jornadas noturnas e, na maioria das vezes, os homens encontram trabalho em canteiros de obras, enquanto as mulheres fazem faxina em empresas ou residências.

Mas também há cabeleireiros, cozinheiros, pequenos comerciantes, bares, restaurantes e mercearias brasileiros, jornais voltados para a comunidade e igrejas que rezam a missa em português.

Mesmo sem papéis, Maria José diz que a qualidade de vida que encontrou na Europa supera em muito a que deixou em sua terra natal. "No Brasil, a gente não consegue nem ir ao Beto Carrero; aqui, levava minhas três crianças à Disney."

As vantagens vão além do padrão de consumo, segundo ela: "Posso entrar em qualquer lugar sem que ninguém franza o cenho. No Brasil, seria mal vista num restaurante de ricos; a diferença de classes é muito maior".

Dez anos depois de chegar a Bruxelas, Maria José conseguiu finalmente seus documentos, em um processo de legalização em massa do governo belga, feito após protestos, invasões e greves de fome.

Mas precisou voltar ao Brasil por problemas familiares em 2014 e acabou perdendo o direito à residência. Desta vez, diz ela, está sendo muito mais difícil ficar no país de modo irregular, "porque agora eu sei a diferença que faz ter os documentos”.

quitinete e feijoada

Informalidade é sinônimo de precariedade absoluta, afirma a brasileira, que divide uma quitinete de 20 metros quadrados com dois amigos em Saint-Gilles, bairro de Bruxelas.

Como os sem-papéis não podem reclamar à Justiça, os proprietários costumam cobrar mais caro e, muitas vezes, é preciso alugar imóveis que não cumprem as condições de segurança, afirma Wahlgren. “Há casos de oito pessoas dividindo dois quartos, e o senhorio ameaça denunciar se houver qualquer atraso no pagamento.”

Também não é rara a exploração do trabalho, com pagamento de 6 euros por hora (R$ 48/hora, equivalente a 60% do salário mínimo no mês) e jornadas sem controle, geralmente acima de oito horas diárias.

Na saúde, essa diferença também fica clara. Quando era regularizada, Maria José caiu, quebrou o braço, foi atendida pelo serviço público e recebeu cobertura da Previdência durante seu afastamento.

No ano passado, irregular, precisou parar durante o confinamento e não recebeu um tostão. Neste ano, contraiu Covid-19 e ficou três semanas em isolamento —por sorte, diz, desta vez sua patroa manteve os pagamentos. ​

Segundo Wahlgren, a situação fica crítica quando indocumentados adoecem ou se acidentam. O atendimento de saúde na Bélgica é vinculado à contribuição previdenciária, e informais só recebem tratamento gratuito em casos extremamente graves.

Ela relata o caso de uma moça com queimaduras de primeiro e segundo grau que recebeu do hospital uma conta de 3.000 euros (cerca de R$ 20 mil).

Para custear um tratamento dentário de um imigrante, Maria José e outros colegas promoveram no começo do ano uma feijoada beneficente —com delivery, devido ao confinamento.

'somos bélgica também'

Neste mês, a Coordenação dos Sem-Papéis da Bélgica lançou uma campanha para arrecadar assinaturas em uma petição por nova rodada de regularização. “Você nos conhece. Somos a mãe de um colega de classe do seu filho, o atendente da mercearia da esquina, a pessoa que limpa seus escritórios ou conserta seu aquecedor. Separamos nosso lixo, pagamos aluguel”, diz a iniciativa.

O foco principal não são os indocumentados, mas a população regularizada. “Vocês, cidadãos, possuem um direito fundamental que muda tudo: o direito de votar. Os eleitos estão claramente convencidos de que nosso destino não importa para vocês. Mas acreditamos que um número significativo de belgas está ao nosso lado”, afirma o texto da campanha.

O objetivo é chegar ao número simbólico de 150 mil assinaturas —equivalente à estimativa de indocumentados no país.

Maria José diz acreditar que a pandemia de coronavírus, que aumentou a vulnerabilidade dos imigrantes, deveria ser um motivo a mais para que o governo abrisse um canal de negociação.

Mas não é o que vem acontecendo, segundo os ocupantes da igreja de São João Batista em Béguinage, que esperavam mais acesso ao principal oficial de imigração da Bélgica, Sammy Mahdi, um filho de refugiados iraquianos. ​

A reação de Mahdi foi sentida como um balde de água fria. “Não faz sentido ocupar uma igreja ou uma mesquita. Não haverá regularização em massa”, disse em entrevista, afirmando que os irregulares deveriam voltar para seus países.

“Aqueles que desejam se inscrever para regularização humanitária devem fazê-lo seguindo os procedimentos adequados, não ocupando uma igreja. Não serei chantageado”, acrescentou.

Para Wahlgren, é realmente improvável uma nova onda de documentação como as duas feitas na década passada. “O contexto todo mudou, a situação econômica e de segurança jogam contra. Qualquer concessão será feita caso a caso”, diz ela.

Mudou ainda o ambiente político. Depois de dois anos sem formar um governo, a Bélgica chegou a uma coalizão composta de sete partidos com visões contraditórias sobre imigração.

O partido de Mahdi, o Flamengo Democrata Cristão, é o mesmo que estava à frente do governo na última onda de regularização, mas agora defende uma posição “firme, mas justa”. Na prática, isso quer dizer facilitar a volta dos que não tiverem pedidos aceitos.

o que diz a lei

De forma geral, a lei belga exige que quem pretende residir no país por mais de três meses e trabalhar apresente o pedido antes de embarcar.

As autorizações variam muito de acordo com as habilidades —padeiros, açougueiros, médicos, enfermeiros e pedagogos são alguns dos aceitos com mais facilidade, porque faltam profissionais nessas áreas na Bélgica.

Em circunstâncias excepcionais, é possível pedir a residência quando já se está na Bélgica, mas será preciso comprovar circunstâncias sérias que impedem o retorno ao país de origem.

E mesmo essas são exceções. Em meio a barreiras mais duras, pedidos de asilo feitos por brasileiros à União Europeia dispararam de 95 solicitações em 2015 para 265 em 2017, e o número explodiu para 1.465 em 2019 (último dado disponível).

Mas a chance é muito reduzida, afirma Wahlgren, que assessora alguns desses pedidos: “É preciso estar realmente exposto ao risco, provar de forma documentada que há perseguição”. Dos casos brasileiros analisados pela UE em 2019 (que incluem também pedidos de anos anteriores), 635 foram recusados (90 deles após recurso).

Em todo o ano de 2019, 105 brasileiros ganharam status de refugiado e 30 conseguiram asilo por razões humanitárias, o mais difícil de todos e sempre temporário, segundo a ativista. No acumulado, o ano fechou com 1.610 casos ainda à espera de serem avaliados.

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