Igrejas devem ficar de fora de guerras culturais, diz téologo de Yale

Para Miroslav Volf, insistir em ir a cultos presenciais durante a pandemia é insistir em prejudicar nossos vizinhos

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Rio de Janeiro

As guerras culturais espalharam bárbaros por toda parte, e as igrejas cometem um grande erro ao se envolverem nessas batalhas, diz o teólogo croata Miroslav Volf, fundador do Centro de Fé e Cultura da Universidade Yale. Volf atualiza um clássico seu, "Exclusão e Abraço", lançado primeiro em 1996 e reeditado para caber no espírito do nosso tempo. No Brasil, foi publicado pela editora Mundo Cristão.

À Folha o teólogo fala sobre o bom samaritanismo que, hoje, significa abrir mão de reuniões religiosas presenciais para deter a Covid. "Insistir em adorar pessoalmente é insistir em prejudicar nossos vizinhos."

O teólogo croata Miroslav Volf, professor de teologia da Universidade Yale - Divulgação

O sr. lançou "Exclusão e Abraço" há 25 anos. De lá para cá, que metade desse binômio prevaleceu? Quando escrevi o livro, o mundo se globalizava rapidamente após a queda do mundo bipolar [da Guerra Fria]. Conflitos identitários não eram raros, mas aconteciam nas bordas. Quando descambaram para confrontos abertos, o Ocidente muitas vezes os vivenciou como barbárie subcivilizacional. Hoje a política identitária é uma realidade global. “Bárbaros” estão por toda parte, para usar o vocabulário que geralmente desaprovo.

Por quê? Não quero cravar que a maior parte da política identitária de direita seja expressão de uma luta anticivilizacional. Exceto pelo extremo disso, é um ponto de vista moral. Discordo profundamente, mas não quero desumanizar quem acredita nisso.

O sr. levantou em 1996 meios para evitar o extremismo. O mundo teve sucesso nesse ponto? O extremismo abunda. Os EUA, que desde a sua fundação foram um farol de democracia, tiveram até recentemente um presidente profundamente antidemocrático, o sr. [Donald] Trump, que perseguia não apenas políticas do tipo "América primeiro", mas "América branca primeiro". O país continua dividido.

O que o slogan trumpista "Make America Great Again", que o sr. cita no prefácio, diz sobre nossos tempos? Que nos preocupamos apenas conosco. Não é tão supremacista quanto “Deutschland über alles” [Alemanha acima de tudo, adotado pelo nazismo], mas não está muito atrás. Não há nada de cristão nisso, embora muitos devotos o tenham abraçado. A fé cristã é um credo universalista, o que significa que Deus cuida de cada humano igualmente. Um cidadão não é como um operador de Wall Street que exige o melhor negócio para si e para seus acionistas, não importa o que aconteça com as outras pessoas.

E quanto ao Brasil? Visitei o país apenas uma vez, em 2018. Você pode imaginar que minha percepção do que está acontecendo política, econômica e culturalmente por aí é limitada. Mas, vendo de fora, parece estranhamente semelhante à situação nos EUA [sob Trump].

Neste contexto polarizado, a religião pode semear discórdia? Ao longo dos séculos, as religiões desempenharam papéis contraditórios. O cristianismo, por exemplo, deu origem ao humanitarismo como o conhecemos, mas também legitimou a colonização de povos, abençoou guerras e agiu de formas que entram em contradição com a missão de Jesus Cristo. O argumento do meu livro é que no cerne dessa fé estão os recursos para uma “política de abraço”.

Qual seria ela? Uso abraçar como metáfora para a parábola do filho pródigo, que ilustra tanto o caráter de Deus que cristãos devem emular quanto a maneira como Ele se relaciona com os rebeldes e os "cidadãos de bem". Existe um senso de que os inimigos também devem ser amados, mesmo se, e especialmente quando, devemos resistir a eles.

O sr. acha que templos devem continuar abertos em fases mais críticas da pandemia? Quem frequenta serviços presenciais não se coloca apenas em risco. Infectados nos cultos carregam a Covid para fora. Insistir em adorar pessoalmente é insistir em prejudicar nossos vizinhos. Sei que alguns líderes afirmam que não se reunir causa dano espiritual, o que seria pior do que a morte. Mas persistir nas reuniões quando o vírus está aumentando é moralmente errado. É análogo à justificativa que o sacerdote, na história bíblica do bom samaritano, poderia ter dado para não ajudar o homem ferido à beira do caminho: suas necessidades espirituais urgentes eram mais importantes do que a vida do outro. Jesus, porém, elogiou o samaritano, aquele que deixou de lado suas prioridades por causa do necessitado. Se a pandemia se agravar, vamos ficar em casa e fazer o mesmo.

Quando o Supremo Tribunal Federal determinou que as igrejas permanecessem fechadas se assim governadores e prefeitos decretassem, pastores disseram que a decisão feria a liberdade religiosa. Concorda? Não acredito. É, ou ao menos deveria ser, uma questão de segurança pública. Para virar discriminação religiosa, um estado ou uma cidade teriam que impôr restrições mais rigorosas a missas e cultos do que a outras atividades públicas ou comerciais comparáveis em relevância. Mas, mesmo sem decretos, as igrejas devem fazer suas próprias deliberações morais guiadas pelo amor ao próximo.

A crise causou muitos cismas na sociedade, em temas como vacina, lockdown e até o uso de máscara. Que lição tiraremos disso? Espero que seja a de que somos os guardiões de nossos irmãos e irmãs. A atual pandemia é um caso claro em que, trabalhando para o bem dos outros, eu trabalho para o meu.

Qual é a participação dos grupos religiosos na polarização? Nos EUA, e em parte da Europa, as igrejas têm se envolvido fortemente em guerras culturais. Acho um grande erro. A liderança religiosa pensa que vencer essas batalhas impedirá a secularização e manterá a nação inteira ligada à herança cristã. Estou convicto de que isso não leva ao ressurgimento da religião, mas à secularização. O engajamento político dos cristãos só faz sentido quando temos uma visão social de inspiração cristã, e não quando selecionamos algumas questões [morais] e batalhamos por elas.

O senhor está otimista com o mundo pós-pandemia? Prefiro não pensar em otimismo e pessimismo, e sim na compreensão judaica e cristã de “esperança” e “desespero”. O otimismo legítimo é baseado na crença de que o presente está grávido de futuro e o dá à luz. Se assim for, temos motivos para nos preocupar. Já a esperança pode existir mesmo nas circunstâncias mais sombrias, mesmo se estamos no marco zero. Quando Jesus estava pendurado na cruz em agonia e vergonha, não havia razão para otimismo. Mas então veio o milagre da ressurreição, e os seguidores de Jesus aprenderam a ter esperança de que coisas impossíveis são possíveis. Bem entendida, a esperança é “uma xícara de café” no momento.


Miroslav Volf, 64
Professor de teologia da Faculdade de Divindade da Universidade Yale (EUA), fundou e dirige o Centro de Fé e Cultura na mesma instituição. Escreveu mais de 20 livros, entre eles 'Exclusão e Abraço' (1996, revisado em 2019) e 'Allah: A Christian Response' (Alá: Uma Resposta Cristã, em tradução livre; 2011)

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