Presidente turco esnoba líder europeia e cria saia-justa diplomática

Presidente da Comissão Europeia é deixada sem poltrona em encontro com Erdogan e Charles Michel, do Conselho Europeu; direito das mulheres foi tema de reunião prévia

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Bruxelas

Uma esnobada explícita na presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em reunião oficial com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, causou uma avalanche de protestos nesta quarta-feira (7) na União Europeia.

Única mulher entre os líderes presentes no encontro em Ancara, Von der Leyen ficou parada no meio do salão ao descobrir que havia apenas duas poltronas —nas quais se sentaram Erdogan, ao lado da bandeira turca, e Michel, ao lado do pavilhão da UE. Depois de abrir as mãos e emitir um interrogativo "ãhm", ela acabou se sentando num sofá, em posição clara de escanteio em relação aos dois presidentes.

O episódio, batizado na Europa de "sofagate", irritou políticos, diplomatas e jornalistas, e o alvo foi não apenas o presidente turco —cujas posições sexistas são conhecidas— mas também o político belga, que não hesitou em deixar Von der Leyen sem posição de destaque e se omitiu sobre o fato até a noite seguinte.

Em rede social, o gesto foi chamado de vergonhoso pela eurodeputada Iratxe García Pérez, líder do grupo Socialista e Democrata no Parlamento Europeu, de "cena obscena" por uma repórter italiana e de "fiasco diplomático" por pessoas da área, que dizem nunca ter visto tratamento tão desigual a líderes equivalentes.

Vários temas tratados no encontro —como políticas de imigração, o único que teve um resultado concreto— são de responsabilidade da Comissão, e não do Conselho Europeu, o que justificaria que, na falta de poltronas, fosse Von der Leyen a beneficiada. A saia-justa ocorreu após uma reunião de duas horas entre os três líderes, em que um dos assuntos foi a retirada da Turquia da Convenção de Istambul, sobre direitos femininos.

Em reprodução de vídeo, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, de costas, no momento em que percebe não ter uma cadeira para ela durante reunião com o líder da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, à dir., e o chefe do Conselho Europeu, Charles Michel, em Ancara
Em reprodução de vídeo, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, de costas, no momento em que percebe não ter uma cadeira para ela durante reunião com o líder da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, à dir., e o chefe do Conselho Europeu, Charles Michel, em Ancara - AFP

Em entrevista nesta quarta, o principal porta-voz da Comissão, Eric Mamer, oscilou entre dizer que "não faria do caso um incidente" e declarar que "a presidente deveria ter sido sentada exatamente como Michel e Erdogan" (o status hierárquico de Von der Leyen e Michel é o mesmo). Agora, diz esperar que a instituição que ela representa seja tratada com o protocolo correto.

Em ocasião anterior em que Erdogan recebeu presidentes homens da Comissão e do Conselho —Jean-Claude Juncker e Donald Tusk—, eles foram acomodados em poltronas idênticas, um de cada lado do presidente turco.

Segundo Mamer, a Comissão "tomará providências para que falha semelhante não se repita". O porta-voz não esclareceu, porém, se as instituições europeias não haviam sido informadas com antecedência sobre o protocolo. Também não quis responder sobre que hipótese considerava mais provável: uma "pegadinha” planejada por Erdogan para desconcertar Von der Leyen, um insulto misógino direto ou uma mensagem política foram as alternativas apresentadas pelo repórter.

"Não sei que mensagem a Turquia poderia querer passar, mas o que importa é que nós passamos claramente a nossa”, afirmou o porta-voz, dizendo que Von der Leyen “preferiu priorizar a substância à forma” e prosseguir com a reunião. "A presidente reagiu de forma assertiva. Não deixou a reunião, participou ativamente e tomou todas as atitudes necessárias”, disse Mamer.

O principal resultado prático foi a prorrogação do acordo de cinco anos pelo qual a União Europeia dá ao governo turco € 6 bilhões (quase R$ 40 bilhões) para que o país evite a passagem de imigrantes em direção à Europa, pela fronteira com a Grécia.

O esquema foi implantado após a crise de imigração de 2015, quando mais de 1 milhão de pessoas que fugiam de conflitos em seus países entraram na União Europeia. As estimativas são de que estejam hoje retidos na Turquia cerca de 4 milhões de imigrantes, principalmente sírios e afegãos.

Na entrevista após o encontro, a presidente da Comissão Europeia não fez menção à desfeita. Afirmou que a viagem tinha como objetivo “dar um novo impulso” ao relacionamento com a Turquia e descreveu como “interessante” a reunião com Erdogan. Também se declarou "profundamente preocupada” com a saída da Turquia da Convenção de Istambul, medida que, segundo Von der Leyen, "passa um sinal errado".

Mamer, o porta-voz, não respondeu se a Comissão considera "um sinal errado" Charles Michel ter tomado a única poltrona disponível, em vez de esperar que uma terceira fosse trazida ou de ceder seu lugar.

"Essa é uma pergunta que deve ser feita ao Conselho Europeu. O que posso dizer é que a presidente Von der Leyen pediu explicações a todos os envolvidos.”

Procurado desde a noite de terça, o porta-voz do Conselho não falou sobre o assunto. Mais de 24 horas depois, às 21h (horário local, 16h no Brasil), Charles Michel publicou uma mensagem em rede social, dizendo-se "duplamente penalizado": "Primeiro, pela impressão que eu teria sido indiferente à má-condução protocolar em relação a Ursula. (...) E estou triste porque esta situação ocultou o grande e benéfico trabalho geopolítico que realizamos juntos em Ancara".

Ele afirmou que decidiu se manifestar porque as imagens "causaram reações e interpretações às vezes rudes", e que "nada está mais distante" da realidade que a interpretação de que ele não teria reagido ao episódio.

"Ainda que tenhamos percebido o caráter lamentável da situação, optamos por não agravá-la por um incidente público e privilegiar nesse início de encontro a substância da discussão política que iríamos começar, Ursula e eu, com nossos convidados", escreveu.

A chancelaria turca afirmou que "não houve intenção de causar danos" à presidente da Comissão Europeia e que "a delegação avançada da União Europeia concordou com o protocolo em geral", embora não esteja claro se isso incluía a disposição dos assentos.

No sofá, Von der Leyen ficou em posição equivalente à do chanceler da Turquia, Mevlut Çavusoglu, que ocupou móvel semelhante à sua frente.​

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