Protestos voltarão com força na América Latina assim que pandemia amenizar, diz Juan Manuel Santos

Ex-presidente da Colômbia afirma que, para barrar caudilhismos, é preciso seguir exemplo de líderes mulheres

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Buenos Aires

"Fazer guerra é fácil, difícil é fazer a paz." Repetindo esse mantra, o ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos vê avanços na implementação do acordo de paz com a extinta guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

"O conflito motivado por razões políticas acabou, mas é preciso que o atual governo impeça que grupos criminosos ligados ao narcotráfico ocupem as áreas que antes eram controladas pela guerrilha", afirma em entrevista à Folha o vencedor do prêmio Nobel da Paz em 2016.

O ex-presidente da Colômbia e Prêmio Nobel da Paz, Juan Manuel Santos
O ex-presidente da Colômbia e Prêmio Nobel da Paz, Juan Manuel Santos - Arquivo pessoal

Santos critica a lentidão do atual presidente, Iván Duque, apadrinhado por Álvaro Uribe, seu principal rival político, para cumprir os principais pontos do pacto. Para o ex-líder colombiano, a demora tem permitido o retorno da violência a essas regiões. Tanto que, no último dia 24, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC) divulgou relatório alertando para um aumento da violência no interior do país.

Em 2020, afirma o documento, 389 civis foram mortos em ataques de facções criminosas —trata-se do número mais alto desde 2016, quando foi aprovado o acordo de paz.

Santos também afirma que a América Latina deve viver uma nova onda de protestos devido à pandemia. "Já havia insatisfação com as lideranças políticas antes da chegada do coronavírus, e isso voltará com mais força, porque os problemas se agravaram."

Como o sr. vê a América Latina nesta pandemia? Esta crise revelou e agravou os problemas que a região sempre teve em relação a desigualdade e pobreza. Fez crescer a desconfiança das populações em seus dirigentes e em suas instituições. E isso coincidiu com uma falta de liderança na América Latina. O mundo de hoje se caracteriza pela falta de liderança em nível mundial, e o caso latino-americano é especialmente grave. Desde a Argentina até o México não há líderes com capacidade de transmitir segurança à sociedade. A região está à deriva. Em muitos países, a lei do pêndulo que vai da esquerda à direita e vice-versa, e que é uma lei inexorável na política, está sendo verificada. Aconteceu na Argentina, na Bolívia, no Chile e no México. No Brasil, a mudança foi mais abrupta, mas estou seguro de que a lei do pêndulo também vai se aplicar e haverá uma mudança para o centro ou para a esquerda em algum momento.

Os países latino-americanos não têm sido capazes de entregar à população o que ela está pedindo. Há uma diferença muito grande entre as expectativas da sociedade e a capacidade dos estados de satisfazê-las, mesmo em um país que, por exemplo, considerava-se uma estrela da América Latina, como o Chile. O que levou os chilenos às ruas ainda não foi resolvido. As pessoas esperam muito do Estado, esperam igualdade, acesso a oportunidades, e, quando se vê que isso não foi entregue, sai às ruas para protestar.

O sr. crê que os protestos que marcaram o ano de 2019 podem voltar? Não tenho a menor dúvida. Apenas se amenize a pandemia, e as insatisfações vão reaparecer, e de modo mais acentuado, porque a situação no geral se agravou —a pandemia está gerando novos problemas. Esse descontentamento vai ser visto em todos os países. O desafio será lidar com esse descontentamento social. Será preciso evitar os populismos demagógicos, porque a América Latina sempre foi propensa a eles, ao caudilhismo. Eu espero que possamos encontrar esse novo paradigma, que não é difícil de desenhar.

A América Latina precisa de políticas que gerem mais igualdade, que repartam melhor a riqueza, precisa de melhor acesso a serviços básicos, como educação e saúde. E há um tema que, por sorte, tem sido cada vez mais importante no cenário mundial e no qual a América Latina pode e deve ter um papel de liderança no mundo, que é o tema ambiental. Sei que há muitos presidentes que não gostam do tema. Mas trata-se de uma questão que o mundo todo cada vez mais dá importância, e eu espero que ao redor desse assunto possamos começar a aglutinar os países latino-americanos. Crises como a que estamos vivendo geram oportunidades. Creio que a da América Latina será a de discutir um novo modelo de desenvolvimento e de relação entre a população e o Estado, um novo contrato social.

Os protestos também ocorreram na Colômbia e foram interrompidos pela pandemia. Voltarão a ocorrer aí também? Sim, a Colômbia seguiu o exemplo do Chile e também saiu às ruas devido à desigualdade e à insatisfação das pessoas com o Estado. Mas no caso colombiano houve um fator a mais. Os jovens se levantaram contra o atual governo porque este vem sendo muito reticente em relação ao processo de paz, que será um tema das ruas e das eleições de 2022 [quando a Colômbia vai escolher um novo presidente].

O sr. diz que haverá mais papéis para o Estado, que se exigirá mais do Estado. Mas como ter mais Estado e, ao mesmo tempo, evitar os autoritarismos, os caudilhismos, tão relacionados culturalmente à América Latina? A pandemia, na América Latina e no mundo, sem dúvida nenhuma vai significar um aumento da participação do Estado em tudo, principalmente nos temas relacionados à questão sanitária, como estamos vendo agora com a vacinação. Claro que pode cair no autoritarismo, mas também podem surgir novas soluções. Por exemplo, estamos vendo países liderados por mulheres, como Nova Zelândia, Noruega e Alemanha, que administraram melhor a pandemia. E a liderança das mulheres é menos autoritária e mais persuasiva. O modo para fugir dos caudilhismos é criar essas novas lideranças, seguindo o modelo, por exemplo, dessas líderes que geram confiança.

Que balanço o sr. faz do processo de paz na Colômbia, iniciado com o acordo aprovado em 2016, até aqui? Todo processo de paz tem duas fases. A primeira são a assinatura do acordo e as decisões de curto prazo. Nisso, tivemos grande sucesso. Desmobilizamos a maioria dos combatentes e desarmamos quase 93% do que eram as Farc. Trata-se de um nível de adesão muito alto. Porém, há uma segunda parte que é a construção da paz, e isso leva tempo, é mais difícil. É preciso reconciliar pessoas que, até ontem, estavam se matando. Tivemos dificuldades que eu considero normais e previsíveis, sobretudo com um governo que foi eleito com um discurso hostil ao projeto. Porém, esta gestão está obrigada pela Constituição a cumpri-lo. E, de certa forma, vem cumprindo, contra a vontade, mas cumpre, de modo lento.

O que mais me preocupa é que o governo não foi capaz de controlar os territórios onde antes as Farc atuavam, e é nesses locais que vem ocorrendo o assassinato de líderes sociais, de ex-membros das Farc que se desmobilizaram, de coordenadores de programas relacionados ao acordo, como o projeto de substituição voluntária dos cultivos ilícitos. Nessas regiões é preciso maior empenho na implementação do acordo. Outro assunto que precisa avançar é o da reforma rural que o acordo estipula.

É no campo que sempre estiveram concentradas a pobreza, a desigualdade e a violência. E isso vem sendo tratado com vagar também. Mas o acordo estabelece prazo de três mandatos presidenciais para tomar as medidas para implementar a paz. Estamos ainda na metade do primeiro. Falta um largo trecho.

Tem havido uma série de massacres de civis, assim como assassinatos de líderes sociais, como o sr. mencionou. Crê que isso vem causando uma sensação de que o acordo de nada serviu, embora os homicídios tenham de fato diminuído no plano nacional? Nas zonas onde antes as Farc operavam há muito menos violência. Existe, porém, um problema transversal que marca a Colômbia, que é o narcotráfico. Boa parte desses massacres que estamos vendo é feita de disputas de território entre cartéis do narcotráfico. Mas há uma diferença: as dissidências das Farc hoje recrutam gente por fora, não há o recrutamento de crianças para se formarem na guerrilha, há a fusão com outros criminosos, seja individual ou coletivamente. E vão se formando novas facções criminosas.

A marca Farc desapareceu, e isso é um símbolo importante. Já não temos a violência marcada por uma disputa política. O partido das Farc, que agora se chama Comuns, está no Congresso, e não levando o horror para as famílias colombianas que vivem no campo.

O sr. foi vítima de notícias falsas, começando pela expressão que Uribe cunhou sobre o senhor, de que era um "castro-chavista". O acordo de paz também foi rotulado como algo que "acabaria com a família colombiana" por incluir temas de gênero. Como vê a situação? Por que depois da vitória do "não" no plebiscito na Colômbia vieram outras votações no mundo marcadas por fake news, como o brexit e a eleição de Trump? Na época do acordo, subestimei a potência e a capacidade das fake news de convencer as pessoas e aprendi sobre o seu poder destrutivo vivendo isso na pele. Eu dizia para mim mesmo: "O que estão dizendo é tão maluco, como alguém vai acreditar nesse delírio?". Achava que a campanha que se fazia contra mim e contra o acordo era fora de qualquer lógica e que, portanto, ninguém iria acreditar. Só que acreditaram! O então procurador-geral do país, Néstor Humberto Martínez, um sujeito tão conservador que queimava livros na juventude, dizia que o capítulo de gênero do acordo de paz ia acabar com as famílias colombianas porque tinha ali escondida uma "ideologia de gênero".

Ele disse a líderes religiosos que pedissem para que as pessoas votassem "não" porque havia um artigo no acordo sobre respeito à diversidade sexual e que isso colocava os valores da sociedade colombiana em risco. Eu não liguei porque me pareceu uma bobagem na qual ninguém acreditaria. Mas foi assim que o "não" ganhou, pois 35% das pessoas que votaram "não" votaram devido ao que ouviram falar do que era esse artigo. E o termo castro-chavista, pelo qual ainda sou conhecido, passaram a usar para Joe Biden na eleição contra Donald Trump. Uma exportação da Colômbia para os EUA [risos].

O que o sr. espera do presidente Biden para a América Latina?​ Estou muito entusiasmado, pois sempre estive em total desacordo com Trump. Conheço Biden muito bem. Ele esteve na Colômbia quando eu era ministro da Economia. Conhece a América Latina, já veio para cá 18 vezes. Com relação à Colômbia, sei que está interessado no acordo, que teve envolvimento direto de Barack Obama. Creio que sua prioridade será ajudar nos problemas da América Central, por conta dos imigrantes. E faz muito bem. Apenas com investimentos nesses países é possível resolver esse assunto, não é construindo um muro.


Raio-x

Juan Manuel Santo, 69
Ex-presidente da Colômbia (2010-2018), foi ministro da Defesa no governo de Álvaro Uribe antes de ser eleito. Recebeu o Nobel da Paz por conseguir o acordo de paz com as Farc durante seu governo. É autor do livro "La Batalla por La Paz" (a batalha pela paz), que conta bastidores do acordo.

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