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Leia textos do blogueiro preso após ditadura da Belarus interceptar avião

Reportagens, cedidas à Folha por veículo belarusso, expõem suspeitas de abuso do regime de Aleksandr Lukachenko

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Bruxelas

Que perigo pode oferecer um jornalista de 26 anos para que um ditador intercepte o avião em que ele está, detonando uma avalanche de condenações e sanções internacionais? Criticar o regime era o que fazia há anos Roman Protassevich, blogueiro preso por Aleksandr Lukachenko, ditador da Belarus, no domingo (23).

Até o final de 2019, ele trabalhava em seu próprio país, para vários veículos independentes ou de oposição ao líder autoritário. Mas foi quando deixou a Belarus que Protassevich passou a chamar com mais força a atenção do ditador, culminando na arriscada manobra de desvio do voo da Ryanair.

Moço de cabelos claros bem curtos e blusa azul marinho
O blogueiro Roman Protassevich, durante julgamento em 2017, em Minsk - 10.abr.17/Reuters

O blogueiro contou em um vídeo publicado em 2011 que decidiu combater o regime de Lukachenko após presenciar uma repressão brutal a moradores de Minsk que faziam um "protesto de palmas".

"Cinco enormes policiais de choque da Omon espancaram mulheres. Uma mãe com seu filho foi jogada no camburão. Foi nojento. Depois disso, tudo mudou fundamentalmente”, diz ele na gravação.

Por estar assistindo à manifestação, Protassevich, então com 16 anos, foi detido e depois expulso do liceu científico que frequentava. Sua mãe só conseguiu rematriculá-lo, numa escola comum, depois de renunciar ao cargo de professora na Academia do Exército.

Outras detenções e conflitos na universidade arruinaram suas chances de tirar o diploma de jornalismo, mas Protassevich foi repórter para vários veículos e, durante dez meses, ajudou colegas na Polônia a criar e impulsionar o Nexta, canal de informações em aplicativo de mensagens.

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No final de 2019, sob pressão crescente da ditadura contra ele e colegas ativistas, o jornalista fugiu definitivamente da Belarus e se tornou um dos principais editores do Nexta, em Varsóvia.

Quando manifestantes saíram à rua após a eleição de agosto do ano passado, o canal driblou a tentativa do regime de desmobilizá-los, tornando-se crucial para organizar as grandes marchas. A ditadura bloqueava a internet, mas o Nexta continuava ativo, divulgando orientações sobre onde havia tropas de choque, horários de atos, notícias e documentos. Já acirrada pela atuação no Nexta, a indisposição de Lukachenko contra o jornalista aumentou quando ele deixou a Polônia, em setembro do ano passado, e se mudou para a Lituânia, onde se exilou a líder oposicionista Svetlana Tikhanovskaia.

Dois meses depois, ele foi acusado criminalmente pelo regime da Belarus e incluído na lista de terroristas da KGB, o serviço secreto do país. Os textos abaixo são reportagens de Protassevich cedidas especialmente à Folha pela rádio independente Euroradio —foram traduzidas do belarusso por uma tradutora de Minsk que pediu para não ser identificada, por temer represálias. Escritos em 2019, pouco antes de o blogueiro deixar seu país, eles ajudam a entender por que Lukachenko tenta calar Protassevich.

Após detenção por embriaguez, morador de Grodno tem parte de sua perna amputada

Roman Protassevich (texto original)

Minsk, 23.ago.2019

Homem faz sinal de positivo em frente a camiinhão azul/homem com perna enfaixada em cama de hospital
O mecânico belarusso Dzianis (Denis) Lukianau, em evento automotivo e em hospital onde teve parte da perna amputada - Arquivo Pessoal via Euroradio

Dzianis (Denis) Lukianau, um pai de vários filhos natural de Hrodna, foi hospitalizado após ficar sob custódia da polícia no festival automotivo SunDay.

Sua irmã Daria disse à Euroradio que o homem de 36 anos foi detido pela polícia de choque (Omon) após o festival. Como ele estava embriagado, os agentes decidiram levá-lo para a delegacia. No caminho, segundo Daria, Lukianau foi levado à floresta, onde “eles o usaram para treinar técnicas especiais”.

“No trajeto para a delegacia, o carro parou perto da floresta. Denis foi retirado do carro e levado para dentro da mata, atrás das árvores. E lá de repente começou um carrossel: um por um, os policiais de choque começaram a praticar seus truques, enquanto faziam piadas e se elogiavam uns aos outros, dizendo ‘veja esta!’. Isso durou dezenas de minutos. Está claro que ele foi espancado por profissionais, porque não ficaram arranhões nem hematomas”, relatou.

Lukianau foi depois entregue ao oficial da delegacia, Serguei Karpuk, que sabia exatamente o que estava acontecendo. Quando tentamos contatá-lo, foi impossível: ele saíra de férias.

Algumas semanas depois, Lukianau foi hospitalizado —uma necrose muscular havia se desenvolvido em sua perna. Os médicos fizeram seis cirurgias e sua perna foi amputada. Agora, a infecção está atingindo os órgãos internos, e não se sabe se ele vai sobreviver, segundo Daria.

Ele esperou que a dor passasse sozinha

O tradicional festival automotivo SunDay aconteceu em Grodno, no dia 20 de julho. Carros são o grande hobby de Dzianis Lukianau, um mecânico, e ele não poderia perder o evento.

Ele chegou ao SunDay com um amigo e a namorada dele, e os dois homens se embebedaram um pouco. Os agentes da tropa de choque que policiavam o festival o detiveram por estar bêbado em local público.

A delegacia de polícia fez um boletim de ocorrência citando o artigo 17.1 do Código Administrativo e lhe aplicou uma multa de 0,2 unidade básica, que corresponde a 5 rublos belarussos e 10 kopecks [cerca de R$ 11]. Ele foi então enviado para uma “estação de recuperação” [na Belarus, presos por embriaguez ficam detidos nesses locais até estarem sóbrios], onde passou a noite.

Lukianau foi trabalhar. Suas pernas doíam muito, mas não havia machucados aparentes. Então, diz Daria, ele decidiu esperar que a dor passasse sozinha e não denunciou o espancamento. Três dias depois começaram a aparecer hematomas nas nádegas. O homem achou que eles iriam embora e ficou em casa. Mas o caso acabou ficando muito mais sério que o previsto. Duas semanas depois, a necrose começou. Lukianau foi levado ao hospital.

Ele nunca mais será capaz de andar normalmente

Sua condição piorou rapidamente. Segundo Daria, em duas semanas o irmão passou por seis cirurgias e teve parte de sua nádega esquerda amputada, mas a necrose não foi debelada. Os médicos dizem que as lesões de Lukianau são típicas de um acidente de carro em alta velocidade, quando a vítima fica presa nas ferragens com as pernas esmagadas por muito tempo, sem conseguir se mover.

Homem segura uma menina de uns dois anos no colo e duas outras crianças estão ao seu lado, em frente a um tanque
O mecânico belarusso Dzianis (Denis) Lukianau e seus três filhos - Arquivo Pessoal via Euroradio

“Os músculos de Denis não apenas começaram a se soltar dos ossos mas, como resultado desse processo, a infecção se espalhou para outros órgãos. Agora, os médicos o examinam todos os dias e não fazem mais previsões”, diz Daria.

“Mesmo que sua perna seja salva, ele definitivamente jamais será capaz de andar normalmente. Mas o mais assustador é que a infecção já está acima da cintura e prestes a afetar os intestinos e o estômago, de onde pode rapidamente se espalhar para todo o corpo. E ele pode morrer.”

Advogada, Daria já preparou petições para a Promotoria, o Comitê Investigativo [semelhante à polícia civil] e o Ministério do Interior [responsável por segurança]. A assessoria de imprensa da polícia de Grodno disse à Euroradio desconhecer o caso. Segundo eles, fariam comentários na segunda-feira [três dias depois da publicação do texto].

Daria não consegue entender como seu irmão foi envolvido nessa tragédia: “Não acredito que ele pudesse dizer qualquer coisa rude a ninguém. Ele tem uma família com três crianças e nunca disse um palavrão na vida. Sim, ele estava alcoolizado, mas ele é uma dessas pessoas que, quando bebe, jamais ficam agressivas. Pelo contrário, ele se torna silencioso, calmo, diz que ama todo mundo e assim por diante”.

A Euroradio continuará acompanhando este caso.

Zmitser Palienka tentou cortar seus pulsos no tribunal

Roman Protassevich e Masha Kolesnikova (texto original)

Minsk, 17.out.2019

Moço de cabelos raspados e blusa preta, dentro de cela com grades brancas
O militante belarusso Zmitser (Dmitri) Palienka, em sala de julgamento, onde tentou cortar os pulsos quando soube que sua audiência ocorreria a portas fechadas - Roman Protassevich - 17.out.2019/Euroradio

O anarquista Zmitser (Dmitri) Palienka tentou cortar os pulsos no tribunal quando soube que sua audiência ocorreria a portas fechadas. O julgamento do caso Palienka está acontecendo no Tribunal da Cidade de Minsk. Segundo a reportagem da Euroradio no local, ele foi imediatamente retirado da sala do tribunal, mas ativistas que vieram apoiá-lo se recusam a deixar o local.

Apesar do incidente, o julgamento continua, em outra sala. Ativistas estão tentando em vão entrar no recinto e gritam palavras de apoio a Palienka. "O julgamento de Dmitri Palienka é mais um ato de uma história escrupulosamente documentada de perseguição por parte das autoridades. As autoridades belarussas devem retirar todas as acusações relativas ao exercício pacífico do direito de Palienka de exercer sua liberdade de expressão e abrir o julgamento para o público e para a mídia”, afirmou Aisha Zhang, principal executiva da Anistia Internacional na Belarus.

Moço de cabelos raspados e blusa preta, dentro de cela com grades brancas
O ativista belarusso Zmitser (Dmitri) Palienka, em sala de julgamento, onde tentou cortar os pulsos quando soube que sua audiência ocorreria a portas fechadas - Roman Protassevich - 17.out.19/Euroradio

Palienka já foi sentenciado a dois anos de prisão por “usar de violência contra um funcionário público” e foi solto no ano passado. Mas, em 20 de março de 2019, foi detido outra vez sob suspeita de “vandalismo doloso”, supostamente por jogar spray de pimenta no rosto de um homem que o criticou. O acusado diz que agiu em autodefesa.

Ele foi depois acusado de três outros crimes: “insultar funcionário público”, “incitar inimizade ou ódio racial, religioso ou de outra causa social” e "danificar propriedade”. As acusações são relacionadas a supostos grafites feitos por Palienka. A Anistia Internacional afirmou que as autoridades o estão perseguindo por seu ativismo.

Pessoas amontoadas em corredor
Ativistas tentam entrar em sala onde está sendo julgado o militante belarusso Zmitser (Dmitri) Palienka - Roman Protassevich - 17.out.19/Euroradio

Tradução K.S. e Ana Estela de Sousa Pinto

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