Descrição de chapéu Belarus

Moradora da Belarus relata um ano da crise no país, que espantou o mundo nesta semana

Atual onda de protestos começou com prisão de blogueiro que chamava ditador de barata e queria se tornar presidente

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Bruxelas

Começou com a prisão de um blogueiro em maio de 2020 e descarrilou neste maio com a detenção de outro. Nesse intervalo, uma luta interna extravasou as fronteiras da Belarus, remoto país pós-soviético, e chegou à pauta política dos principais países ocidentais.

Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França e várias outras nações cancelaram voos, congelaram contas, cortaram investimentos e criticaram em público o chamado “último ditador da Europa”, Aleksandr Lukachenko (pronuncia-se “lucachênca”) 1 .

1 Ex-gerente de uma fazenda coletiva soviética, Lukachenko venceu a primeira —e última— eleição livre na Belarus, em 1994, e controla o país desde então.

Acompanhe o que se passou nesses 365 dias, a partir do relato de uma moradora de Minsk que vive o jogo de gato e rato dos que se opõem à ditadura belarussa (seu nome foi omitido a pedido, por temer retaliações).

“Vamos dizer que me chamo Anna —este é o nome mais popular na Belarus, de forma que ninguém será capaz de me identificar por ele. Tenho 34 anos, sou jornalista e ‘ativista de quintal’.

Comecei a participar dos… não eram nem protestos ainda. Coletava assinaturas dos vizinhos no primeiro semestre do ano passado porque queria ser observadora nas eleições para presidente 2 . Era um desejo ingênuo: nem nos deixaram entrar nas seções eleitorais. Até 9 de agosto, o dia do pleito, estava em licença maternidade —tenho um bebê pequeno. Naquela data, estava esperando os resultados perto de um local de votação, mas, quando a comissão publicou resultados mentirosos³, eu e meus vizinhos fomos à cidade expressar nosso protesto.

2 Em 29 de maio de 2020, o popular blogueiro Serguei Tikhanovski (pronuncia-se “tirranófski”), candidato a presidente que chamava de barata o ditador belarusso, foi preso durante a campanha eleitoral. Sua mulher, Svetlana Tikhanovskaia, até então uma dona de casa e mãe de dois filhos, assumiu seu lugar e liderou uma frente de oposição, levando dezenas de milhares de pessoas às ruas.

³ Após impedir a presença de observadores independentes, a ditadura divulgou que Lukachenko vencera com 80% dos votos —o número foi considerado uma fraude insultuosa e detonou protestos na mesma noite

Então, à noite, no centro de Minsk, vi uma imagem terrível 4 . Vocês devem tê-la visto em fotos. Ainda me lembro de como estávamos de joelhos e a tropa de choque começou a atirar granadas. Na mesma noite, comecei a filmar tudo com meu celular e bem cedo na manhã seguinte liguei para meu editor e pedi para voltar ao trabalho. Fiquei apavorada com a ideia de não fazer nada a respeito daquilo.

4 Na primeira semana, mais de 7.000 pessoas foram detidas, 3 pessoas morreram e 450 casos de tortura foram documentados. Adversários políticos foram exilados ou presos

Acompanhei as grandes marchas, mas a primeira delas foi uma manifestação de mulheres. As belarussas queriam levantar sua voz contra a violência e fizeram correntes de solidariedade. Essas imagens começaram a circular, e outras garotas largaram o trabalho, pegaram um táxi e vieram se juntar a nós, formando uma grande marcha espontânea. Andei ao lado delas das 10h às 17h, e cada vez chegava mais e mais gente.

Quando eu não estava trabalhando como jornalista, participava dos protestos como uma pessoa comum. Era um sentimento incrível. Parecia que havia tanto amor ali que íamos inundar qualquer violência com ele. As autoridades não sabiam o que fazer com tantas mulheres nesses primeiros dias, por isso nenhuma de nós era detida. Até que o terror chegou às marchas femininas também.

Lá Fora

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Fui detida durante uma das últimas marchas de mulheres, no outono. Um encapuzado sem identificação no uniforme simplesmente me agarrou e me empurrou para o camburão. Éramos tantas que tínhamos que nos sentar umas sobre as outras, e isso durante a pandemia de coronavírus.

Levaram-nos para o centro de detenção, onde fiquei três dias até o julgamento. Éramos oito em uma cela para cinco; cortaram a água da cela, e não podíamos dar descarga e não tínhamos água nem mesmo para beber. Na segunda noite, levaram embora os colchões.

Fui julgada duas vezes. Na primeira, por participar de marchas. Levei uma multa. Na segunda vez, me acusaram de resistir à detenção. Testemunhas disseram que eu bati em um policial e chutei o carro de polícia. Ouvi essa mentira com uma frieza que me surpreendeu.

Assim que saí da prisão, fui à próxima marcha. Não queria dar a eles uma vitória.

Mas a cada vez a repressão foi tornando mais e mais difícil formar uma grande coluna. Então as passeatas nos bairros começaram. Na nossa área, não se via mais aquele intenso carnaval como nas avenidas centrais. As pessoas entenderam que teriam que escapar da polícia. E então esfriou. Se, no verão, o canhão de água era até divertido, quando passou a fazer -10 ºC lá fora ele se tornou um problema.

No final do outono, já havia muitos carros de polícia nas nossas ruas, como uma patrulha sobre nós, embora a gente more longe do centro.

começaram as ‘marchas de quintal’. E isso era toda uma arte! Nós tínhamos nossos batedores e sentinelas, negociávamos em chats secretos e tomávamos as ruas de assalto. Mas a polícia chegava em instantes. Muitos dos meus vizinhos foram para a cadeia diversas vezes.

E que muros havia na nossa área! Eram tantos murais, fotos, grafites, alçávamos nossas próprias bandeiras.

Mas ultimamente não podemos nem mesmo andar em grupos nas calçadas, porque o policiamento está também nos nossos pátios. Eles circulam em grupos de quatro e, quando chove, precisam se esconder nos parquinhos, porque ninguém os deixa entrar nos prédios.

Agora tivemos a ideia de fazer uma onda noturna de protestos. Às 20h, todos abrem sua janela e gritam “Viva Belarus para sempre”, “Nós acreditamos, nós podemos, nós venceremos”. Às vezes até declamamos poemas.

Moramos perto de um bosque e quando há menos patrulhas “iluminamos a noite”. Vamos todos para a beira da floresta e acendemos nossas lanternas. Quando a polícia chega, corremos entre as árvores como verdadeiros partisans5.

5 Termo utilizado principalmente no Leste Europeu para indicar guerrilheiros que participaram da resistência ao nazismo ou que lutaram contra a presença soviética na região

Também organizamos cursos de belarusso para nossos vizinhos. Não é tão épico quanto as marchas, mas ensinamos as pessoas a falar nossa língua, o que também é importante. E escrevemos cartas para os prisioneiros políticos e arrecadamos auxílio para suas famílias.

Não tenho medo de ser detida ou presa 6. Mas me apavora que tirem de mim o meu bebê. Isso já aconteceu com algumas mães ativistas. Suas famílias foram tachadas de perigosas e ameaçaram separá-las de suas crianças.

6 Até este sábado (29), organizações de direitos humanos contavam 426 presos políticos na Belarus e listavam 15 mortes ligadas à repressão

As grandes marchas dificilmente voltarão agora. Mas esperamos que haja uma nova janela de oportunidade para outras formas de protesto. A reação dos outros países à nossa situação afeta muito as atitudes de Lukachenko. Ele se sentia antes como o rei do mundo. O sequestro do avião 7 é só mais uma evidência de sua prática de fazer sempre o que quer.

E agora ele só recorre a [o presidente russo, Vladimir] Putin, e Putin é o único que o apoia 8. Ou não. Putin também é difícil de decifrar. Recentemente, um propagandista russo disse que a Rússia precisava salvar suas regiões (ou seja, consideram a Belarus como região deles) de Lukachenko.

7 No último domingo, o regime belarusso interceptou um avião que ia de Atenas e Vilnius e prendeu o blogueiro Roman Protassevich, um dos fundadores do canal Nexta, crucial na organização das marchas antiditadura. O ato desencadeou críticas e novas sanções da União Europeia, do Reino Unido e dos EUA. Lukachenko diz que recebeu ameaça de bomba e desviou voo para proteger a população

8 A Belarus é relevante para a Rússia geopoliticamente —por ser um território que a separa da União Europeia— e economicamente —por ser zona de passagem de combustíveis exportados pelos russos. Para Putin, há vantagem no enfraquecimento de Lukachenko, que vinha resistindo a planos russos de aumentar sua influência política e econômica sobre a Belarus. Por outro lado, o presidente russo quer evitar a todo custo uma vitória dos manifestantes, que poderia fortalecer ondas de protesto em seu próprio país

Ao que parece, Lukachenko agora não tem plano algum. Ele não esperava que nós resistíssemos por tanto tempo. Nós também não. Mas não temos outra escolha.

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