Descrição de chapéu The New York Times

Por meio de imagens raras, pesquisadores tiram filhos do Holocausto do anonimato

Holandeses identificam crianças que aparecem em filmagem de nazistas a caminho de campos de concentração

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nina Siegal
Amsterdã | The New York Times

Elas aparecem durante menos de três segundos no filme, seus rostos distorcidos através de janelas. Pequenos querubins, olhando em confusão a cena caótica na plataforma da estrada de ferro. Em poucos instantes o trem começará a rodar, e elas estarão a caminho de um campo de concentração nazista.

Durante décadas, essas crianças estiveram entre as vítimas anônimas do ódio, captadas em uma rara filmagem que mostra nazistas despachando pessoas em vagões de gado para serem assassinadas.

A gravação faz parte de uma compilação conhecida como "Westerbork Film", o nome do campo de transferência nazista do qual judeus holandeses foram deportados para os campos de concentração na Polônia ocupada e na Alemanha. Feita em 1944, a filmagem foi usada em inúmeros documentários sobre a guerra, os passageiros desconhecidos como faces públicas dos milhões enviados para o "leste".

Agora, dois pesquisadores holandeses, autores de um novo livro sobre o filme, identificaram duas das crianças atrás do vidro das janelas, além de pelo menos dez outros indivíduos captados no filme, oferecendo uma visão pessoal e mais detalhada das vidas destruídas pelo Holocausto.

As crianças eram Marc Degen, 3, e sua irmã Stella Degen, 1. Os pesquisadores acreditam que seu primo, Marcus Simon Degen, que em breve faria 4 anos, também estava no trem. As crianças foram deportadas com seus pais em 19 de maio de 1944, para o campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha.

A cena foi registrada por Werner Rudolf Breslauer, um prisioneiro judeu alemão que foi designado para filmar aspectos do campo para fins de propaganda. As três crianças sobreviveram à guerra, mesmo depois que seus pais foram afastados delas, devido aos esforços de outro prisioneiro que as escondeu e protegeu. Duas estão vivas e dão seu depoimento sobre os horrores que sofreram.

"Agora eu sinto que posso gritar dos telhados: 'Ainda estou aqui. Os nazistas não me pegaram'", disse Marc Degen, que recentemente fez 80 anos, em entrevista em sua casa em Amstelveen, um subúrbio arborizado de Amsterdã. Sua irmã, hoje Stella Fertig, vive na cidade de Nova York. Seu primo também sobreviveu à guerra, mas morreu em 2006.

Os pesquisadores, Koert Broersma e Gerard Rossing, revelaram a identidade de outras pessoas que aparecem no filme como parte do lançamento de seu novo livro, "Kamp Westerbork Gefilmd", na terça-feira (18) no Centro de Memórias do Campo Westerbork, um museu e memorial em Drenthe, na Holanda.

A publicação do livro coincide com o lançamento de uma versão recém-restaurada e digitalizada do "Westerbork Film", criada pelo arquivo de mídia Instituto Holandês de Som e Visão. O documentário, originalmente com cerca de 80 minutos, hoje tem duas horas e meia, mostrando vários aspectos da vida no campo de trânsito, incluindo algumas gravações recém-descobertas.

O filme com as novas cenas também foi ajustado para corrigir a velocidade (assim, as pessoas caminham em ritmo normal), o que torna sua projeção mais longa.

Antes dessas identificações recentes, só dois passageiros dos quase mil a bordo do trem tinham sido nomeados: uma menina cigana que espia aterrorizada entre duas portas do vagão de gado foi reconhecida como Settela Steinbach por um jornalista holandês em 1992. Broersma e Rossing haviam descoberto antes que uma mulher que é empurrada em uma espécie de carrinho era Frouwke Kroon, 61, de Appingedam, pequena cidade no nordeste da Holanda, que foi morta em Auschwitz três dias depois.

"Colocar um nome num rosto realmente torna essa enorme tragédia monolítica compreensível e narrável", disse Lindsay Zarwell, arquivista de filmes no Museu Memorial do Holocausto dos EUA, em Washington. "Ter um prenome e um sobrenome, e conhecer um pouco sobre de onde a pessoa veio e o que aconteceu com ela a torna real. Às vezes isso me causa calafrios. E também modifica o que você está vendo."

A restauração do filme e a investigação de sua história foram um esforço conjunto de quatro organizações históricas holandesas: Som e Visão, Camp Westerbork, Instituto NIOD para Estudos da Guerra, do Holocausto e do Genocídio e Bairro Cultural Judeu em Amsterdã.

"Os quatro institutos que cuidam desse filme queriam ter certeza de que a história, e toda a história, fosse contada", disse Valentine Kuypers, curadora do Som e Visão.

Com o mesmo objetivo em mente, Broersma e Rossing decidiram cavar mais fundo na história do filme, que foi feito a pedido do comandante da SS do campo, Albert Konrad Gemmeker. Ele pretendia enviá-lo às autoridades nazistas que queriam fechar o campo de trânsito. Na primavera de 1944, 90% dos judeus da Holanda tinham sido deportados. "Ele foi feito como um filme de propaganda", disse Broersma.

"Gemmeker tinha medo de ser enviado para a frente oriental porque Westerbork tinha perdido seu objetivo como campo de trânsito." O comandante instruiu Breslauer a captar imagens de pessoas trabalhando porque "queria mostrar que Westerbork ainda era importante como campo de trabalho".

Breslauer filmou durante meses com materiais comprados pela SS. Mas ele foi além dos limites de sua tarefa, documentando não apenas trabalho, mas também três remessas de judeus, duas chegando e uma partindo. O trem de saída que levou os Degen era dividido em duas partes. Vagões de passageiros de terceira classe, com janelas e bancos, eram dirigidos a Bergen-Belsen, na Alemanha, onde alguns prisioneiros foram detidos como "material de barganha" e trocados por prisioneiros alemães.

A outra metade do trem, vagões de gado sem janelas, foi para Auschwitz-Birkenau, onde a vasta maioria dos passageiros foi morta em câmaras de gás ao chegar.

Gemmeker, o comandante do campo, havia instruído Breslauer para filmar o transporte? Broersma não acredita nisso. Ele entrevistou a filha de Breslauer, Chanita Moses, nos anos 1990, e ela disse que seu pai filmou os trens sem a autorização do comandante, o que causou discussões.

"Ela nos disse que seu pai estava determinado a deixar um relato de testemunha ocular em filme", disse Broersma. "Ele quis registrar imagens desses transportes porque eram a prova definitiva do Holocausto."

O filme contém cerca de oito minutos de gravação de transporte. Viajantes com estrelas amarelas costuradas aos casacos, sacos pendurados dos ombros, sobem nos compartimentos abertos. Alguns estão atordoados, mas outros parecem estranhamente alegres —o que gerou muito debate acadêmico posteriormente. Idosos e deficientes são vistos sentados no chão do trem, entre palha e bagagens. Quando o comandante dá o sinal, as enormes portas do vagão são fechadas.

A filmagem terminava abruptamente, por motivos desconhecidos. O material cru nunca foi editado.

Breslauer perdeu qualquer vantagem que tivesse por ter servido como cinegrafista, e ele, sua mulher e três filhos foram deportados para Theresienstadt em setembro, depois para Auschwitz, onde a mulher e dois filhos foram mortos com gás. Ele morreu em local desconhecido em fevereiro de 1945; sua filha sobreviveu à guerra. Stella Fertig disse que não se lembra de nada dos anos da guerra.

"As pessoas dizem: 'É melhor que você não saiba'", disse. "Mas eu gostaria de saber um pouco mais."

Ela e Marc Degen não sabiam do filme, ou de seu papel nele, até que os autores os contataram. Quando Marc viu a gravação, reconheceu a si próprio e a sua mãe na janela direita do compartimento do trem.

"Eu fiquei emocionado ao me ver quando menino, sendo transportado com minha família", disse. "Sinto-me privilegiado por, aos 80 anos, me sentir saudável, na cabeça e no corpo, e poder falar sobre isto hoje."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.