Descrição de chapéu África

Quem é o revolucionário africano cujo assassinato levou mais de 30 anos para ser julgado

Conhecido como 'Che africano', Thomas Sankara defendeu revolução à esquerda em Burkina Fasso

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São Paulo

Foram necessárias mais de três décadas para que os assassinos de Thomas Sankara, um dos principais revolucionários africanos, chegassem à Justiça de Burkina Fasso. Apenas em 13 de abril o processo contra o ex-ditador Blaise Campaoré, o seu chefe de gabinete, general Gilbert Diendéré, e soldados envolvidos no caso foi encaminhado ao tribunal militar de Uagadugu, capital do país.

Então presidente de Burkina Fasso, Sankara foi morto por seis militares em 15 de outubro de 1987, com 12 colaboradores. O crime foi o estopim do golpe liderado por Campaoré, até então número dois do governo. Hoje exilado na Costa do Marfim, onde obteve cidadania —por isso, ele não será extraditado para o julgamento—, Campaoré ficou 27 anos no poder e só foi derrubado por uma insurreição popular em 2014.

Moradora de Uagadugu, capital de Burkina Fasso, passa em frente a pichação que pede Justiça pelo assassinato de Thomas
Moradora de Uagadugu, capital de Burkina Fasso, passa em frente a pichação que pede Justiça pelo assassinato de Sankara - Joe Penney - 4.dez.15/Reuters

Foi nesse levante, motivado principalmente pelos jovens que pediam o fim da impunidade e uma troca imediata no poder, que o nome de Sankara ressurgiu com força em Burkina Fasso.

Pai da revolução burquinense, ele ficou conhecido como “Che africano”, em homenagem ao argentino Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana —Sankara inclusive usava uma boina com uma estrela.

Segundo o advogado da família de Sankara, Guy Hervé Kam, com o andamento do processo enfim será possível saber detalhes do que aconteceu. “Hoje, a Justiça vai dar voz para que essas famílias possam fazer seus ritos”, afirma, sobre o fato de os corpos terem sido enterrados num cemitério abandonado.

Junto com eles, Campaoré sepultou qualquer investigação enquanto comandou o país. “As testemunhas tinham medo de falar, e muitas delas foram mortas”, afirma Kam. A lista de réus inclui o ex-ditador —acusado de atentado à segurança do Estado, sequestro, terrorismo e crimes contra a humandidade— e Hyacinthe Kafando, chefe dos seis militares que mataram Sankara.

O julgamento ainda não tem data marcada, mas deve ocorrer no máximo em seis meses, segundo Kam.

O advogado explica que Campaoré foi o executor de uma política que visava tirar o líder revolucionário do poder. “Ele foi usado para atingir esse objetivo e então administrar o poder segundo o interesse daqueles que o colocaram nessa missão.” Além do ex-ditador, potências estrangeiras incomodadas com as políticas de Sankara também estiveram envolvidas no caso, diz o advogado.

O revolucionário era um defensor do pan-africanismo e lutou para acabar com a influência colonialista da França em Burkina Fasso. Capitão do Exército, Sankara chegou ao poder por meio de um golpe de Estado, realizado em 4 de agosto de 1983, e que também teve a participação de Diendéré e Campaoré.

Símbolo maior de sua ruptura com a França foi a mudança do nome do país, que desde sua independência em 1960 se chamava República do Alto Volta. Um ano após o golpe, o revolucionário rebatizou a nação africana para o nome atual, que significa “país dos homens íntegros”, em moré e dioula, idiomas nativos.

O “Che africano” já havia mostrado seu incômodo durante os dois governos anteriores —que também chegaram ao poder por meio de golpes de Estado. Em 1980 e então ocupando o cargo de secretário da Informação em um regime autoritário, Sankara se demitiu em transmissão ao vivo na televisão, quando proferiu sua frase célebre: “Infelicidade àqueles que amordaçam o povo”.

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Apenas dois anos depois, veio o segundo golpe e, junto com ele, uma cisão entre o grupo que desejava uma continuidade e oficiais revolucionários liderados pelo capitão. Apesar dessa divisão, Sankara chegou ao posto de primeiro-ministro e, no cargo, fez críticas ao que classificava como imperialismo.

Em resposta, foi preso em maio de 1983, durante a visita de um enviado do então presidente francês, François Mitterrand, um opositor do nacionalismo econômico que Sankara defendia.

Grupos de esquerda organizaram então um movimento para pedir sua libertação, e os atos ganharam o apoio dos militares, que desconfiavam do governo. Após ser solto, ele uniu todas essas forças e tomou o poder. Braço direito e amigo de longa data do líder, Campaoré capitaneou os comandos militares que saíram de Po, no sul do país, e marcharam em direção à capital, em 4 de agosto de 1983.

A visão política do “Che africano” foi em grande parte moldada pelo período no qual frequentou a escola militar Antisrabé, em Madagascar. Lá, testemunhou em 1972 a virada à esquerda de Didier Rasiraka, que acabou com o regime neocolonialista de Philibert Tsiranana no país.

Assim, Sankara começou a gestar um projeto revolucionário para Burkina Fasso, que ganhou força durante sua passagem pelo Marrocos, onde se aproximou de Campaoré. Uma vez no poder, o “Che africano” deixou clara sua inspiração na Revolução Cubana. Um dos pilares era a educação, e Sankara instou os burquinenses a construírem escolas em suas comunidades. Outro era a saúde, exemplificado em uma campanha maciça de vacinação para diminuir os números da mortalidade infantil, que saíram de 227,7 por mil nascidos vivos em 1982 para 205,6 por mil nascidos vivos em 1987.

O nacionalismo foi outra marca de seu governo, principalmente na questão econômica —Sankara queria diminuir a dependência que o país tinha da França e de organismos internacionais. Para isso, fortaleceu o setor de algodão ao obrigar o uso de roupas com o tecido faso dan fani, tradicional no país. Também impôs os esportes de massa, fechou discotecas ligadas à elite e criou bailes populares. “Foi uma ruptura com o esquema clientelista da época”, explicou o historiador Amzat Boukari-Yabara, ao jornal Le Monde.

As mudanças, porém, logo encontraram inimigos. Perto de seu fim, o então líder era cada vez mais contestado, e mesmo no comando do regime havia um clima de desconfiança. A rejeição à antiga colônia desagradava ao então presidente Mitterrand, contra quem Sankara adotava um tom afiado.

“As pessoas informaram a Sankara que Campaoré queria dar um golpe contra ele”, explica Kam. “Ele sempre dizia que não era verdade.” Hoje, quase 34 anos depois, os ex-aliados ocupam lugares opostos na história do país. “Aquele que morreu se tornou mais vivo e aquele que é vivo é como se estivesse morto.”

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