Descrição de chapéu Coronavírus

Turismo da vacina nos EUA levanta debate ético sobre desigualdade na pandemia

Brasileiros gastam entre R$ 15 mil e R$ 67 mil em viagens para conseguir doses do imunizante

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BAURU (SP)

A estadia do engenheiro paulistano Felipe, 51, em Punta Cana poderia ser apenas parte de uma viagem de férias ao destino turístico mais visitado da República Dominicana, não fosse a pandemia de coronavírus que já matou mais de 3,2 milhões de pessoas em todo o mundo.

Felipe, que prefere não ser identificado pelo sobrenome, cumpre neste sábado (8) o oitavo dia de quarentena antes de ter autorização para pegar um voo para Miami, onde pretende receber a vacina contra a Covid-19.

Como ele, há outros brasileiros que recorrem ao ritmo avançado da imunização nos Estados Unidos para tentar se proteger contra a doença que segue matando aos milhares no Brasil diante de um programa de vacinação que avança a passos lentos.

Pessoas fazem fila para receber uma dose da vacina contra o coronavírus da fabricante Johnson & Johnson numa clínica ambulante na área externa em Washington
Pessoas fazem fila para receber uma dose da vacina contra o coronavírus da fabricante Johnson & Johnson numa clínica ambulante na área externa em Washington - Chip Somodevilla - 6.mai.2021/AFP

"Não dá para confiar no governo e nesse calendário de vacinas que a gente nem sabe se se sustenta", afirma. Seu objetivo é tomar a vacina produzida pela Janssen, de dose única, para que não precise esperar passar mais tempo em solo americano até receber uma eventual segunda dose.

Reconhecendo-se um "superprivilegiado" por poder viajar aos EUA em busca da vacina, Felipe estima que o custo total da empreitada gire em torno de US$ 12 mil (R$ 67,2 mil) —ou quase 450 pagamentos do novo auxílio emergencial para o enfrentamento da crise.

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"Eu não estou fazendo nada que eu considere antiético. Eu acho que seria um problema se eu estivesse de alguma forma atrapalhando o cronograma ou tivesse tirando doses de alguém", diz.

A advogada curitibana Francisca, 35 —que também prefere não dizer o sobrenome— fez planos semelhantes aos de Felipe. A ideia era aproveitar uma viagem de férias ao México para, de lá, também embarcar a Miami, onde ela tem um apartamento, e receber a vacina. Ela conta que conhece várias pessoas que fizeram trajetos parecidos, em roteiros com valores estimados entre R$ 15 mil e R$ 20 mil.

"Aqui no Brasil eu sou contra vacina particular. Isso cria uma desigualdade", diz Francisca, que classifica o chamado "turismo das vacinas" como "uma situação muito elitista". Mas a percepção de que pessoas mais jovens, de sua faixa etária, têm sido vítimas cada vez mais frequentes da Covid-19, e mesmo a saudade de viajar a fizeram considerar a opção.

"Eu estudei em colégios americanos, fiz faculdade lá, então eu estou desesperada para ir para os EUA", conta. "E esse pretexto de aproveitar para tomar vacina é o melhor de todos!"

A advogada estava com medo de viajar devido à gestação de 16 semanas, mas só abandonou de vez os planos quando a secretaria de saúde do Paraná anunciou que mulheres grávidas também passariam a ser grupos prioritários para a vacinação —ainda não há um cronograma definido, mas gestantes e puérperas devem se tornar elegíveis nas próximas semanas.

Já a engenheira maceioense Fernanda, 33, contou à Folha que tinha burocracias para resolver em Miami e aproveitou a viagem para receber a vacina de dose única contra o coronavírus. A dupla cidadania (americana e brasileira) permitiu que ela fosse aos EUA e voltasse ao Brasil sem cumprir quarentena.

"Eu não via perspectivas de vacinação, no curto prazo, para pessoas da minha idade. Como eu tinha essa oportunidade, achei melhor aproveitar."

A viagem internacional, segundo ela, passou muito mais segurança do que os voos domésticos em que esteve no período de pandemia. Avião "quase vazio", protocolos de segurança mais sérios, tudo "muito tranquilo".

Do ponto de vista legal, não há irregularidade em ir aos EUA receber a vacina, dizem duas advogadas com atuação em relações internacionais consultadas pela reportagem.

"Os países, no exercício de suas soberanias, definem os critérios para fluxo de pessoas no seu território. Não há nenhuma infração jurídica. A política pública de saúde é prerrogativa do Estado, e cada estado faz a sua", explica Karla Borges, professora de direito internacional da ESPM.

Uma vez que o viajante tenha um passaporte válido e o visto necessário, sequer existe obstáculo ético, avalia Gisele Mendes, do escritório Andersen Ballão, em Curitiba. "Todos têm livre arbítrio e cada um sabe o que é melhor para sua saúde. Se a pessoa tem essa oportunidade de se vacinar sem furar fila, que vá. Pelo menos é uma pessoa a mais que vai estar vacinada."

Para os epidemiologistas, no entanto, a lógica precisa ser diferente. "Aqueles que podem sair do país para se vacinar em outros países, o fazem em detrimento da grande maioria que não pode fazer. Então é sim mais um padrão de desigualdade", afirma Ethel Maciel, pós-doutora em epidemiologia e professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

Segundo a especialista, além da maior exposição a riscos de contaminação durante a viagem, a pessoa que viaja para ser vacinada no exterior e retorna ao Brasil encontra ainda o mesmo cenário epidemiológico de altas taxas de transmissão, de modo que, em âmbito coletivo, está igualmente sujeita ao contágio —ainda que reduza muito suas chances de desenvolver um quadro grave da doença.

"É uma prática que reforça as desigualdades enquanto nós deveríamos estar lutando juntos agora para sair desta pandemia", diz Maciel. "A vacina é uma estratégia coletiva. Nós precisamos pensar coletivamente e agir da mesma forma."

Para Marina Borba, advogada e pesquisadora em bioética do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP, existe um conflito jurídico entre o individual e o social quando o assunto é o direito à saúde, previsto na Constituição.

Enquanto o artigo 196 prevê que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", o artigo 6º lista a saúde como um "direito social". Ou seja, para a especialista, embora as pessoas que vão aos EUA para tomar vacina ajam em nome de um direito individual à saúde garantido pela Constituição, este não deveria se sobrepor ao direito coletivo.

A pesquisadora também rechaça o argumento de que a vacinação de um brasileiro no exterior ajudaria a desafogar o SUS (Sistema Único de Saúde). O mesmo raciocínio é comumente utilizado para defender que empresas privadas possam negociar a compra de vacinas contra a Covid-19 para imunizar seus funcionários e acelerar a retomada econômica.

Segundo Borba, quando pessoas que têm poder de compra se vacinam fora do sistema público de saúde, acabam tornando o imunizante um recurso material ainda mais escasso em âmbito global. "Aumenta-se o preço, diminui-se o acesso daqueles que já não o têm e cria-se uma espécie de competição com o governo brasileiro na aquisição das vacinas."

A conduta da administração federal, considerada omissa e negacionista, também não deve servir, para ela, de pretexto para a busca de vacinas por meios particulares nos EUA ou em outros países. "Se o governo errou e foi omisso, nós temos que usar as medidas éticas e jurídicas adequadas para corrigir essa falha, e não buscar outros caminhos e subterfúgios que, sob os pontos de vista coletivo e ético, são tão questionáveis", diz Borba.

Ainda que tenha sido imunizada contra a Covid-19 em um contexto diferente do "turismo das vacinas", a musicista Maya Salles, 26, diz que recebeu as doses em Trinidad, no Colorado, com um sentimento de culpa.

"Eu fiquei meio na 'bad' quando eu tomei porque pensei: 'poxa, tem um monte de gente no meu país com uma necessidade imensa de vacinas'", conta.

Ela viajou para os EUA ainda em 2020, antes do fechamento das fronteiras e do agravamento da crise sanitária. Passou o último ano em solo americano e, trabalhando como cuidadora de crianças, tornou-se elegível para receber a vacina em março.

Com isso, passou na frente dos familiares que ficaram no Brasil, em Guarulhos: a avó de 83 anos, que só recebeu suas doses em abril; a mãe, 59, que apesar de ser profissional da saúde, não recebeu a vacina por estar afastada do trabalho; e o pai, motorista de ônibus de 57 anos que segue exposto ao risco de contaminação.

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