Descrição de chapéu The New York Times terrorismo

Agentes sauditas que mataram Khashoggi receberam treinamento nos EUA

Prática ocorreu sob contrato aprovado pelo Departamento de Estado americano

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Mark Mazzetti Julian E. Barnes Michael Laforgia
Washington | The New York Times

Quatro sauditas que participaram do assassinato do jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi em 2018 fizeram treinamento paramilitar nos EUA. A prática ocorreu em 2017 sob um contrato aprovado pelo Departamento de Estado, conforme revelam documentos e pessoas que estão a par do acordo.

A instrução ocorreu no momento em que a unidade secreta responsável pelo assassinato de Khashoggi iniciava uma campanha extensa de sequestros, detenções e tortura de cidadãos sauditas ordenada pelo governante “de facto” da Arábia Saudita, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS), para sufocar a dissensão no interior do reino.

O treinamento foi ministrado pela empresa de segurança Tier 1 Group, com sede no Arkansas, pertencente à companhia Cerberus Capital Management. A empresa disse que o treinamento —que inclui “tiro ao alvo seguro” e “contra-ataque”— foi de natureza defensiva e teve a finalidade de garantir proteção melhor aos líderes sauditas. Uma pessoa com conhecimento do treinamento disse que as aulas incluíram vigilância e combate em espaços pequenos.

Jamal Khashoggi, então gerente geral da Alarab TV, participa de uma coletiva de imprensa na cidade de Manama, Bahrein, em dezembro de 2014.
Jamal Khashoggi, então gerente geral da Alarab TV, participa de entrevista coletiva no Bahrein - Mohammed Al-Shaikh - 15.dez.14/AFP

Não há evidências de que as autoridades americanas que aprovaram o treinamento ou os executivos do Tier 1 Group soubessem que os sauditas estavam envolvidos na repressão em curso na Arábia Saudita.

Mas o fato de o governo ter aprovado treinamento militar de alto nível para agentes que depois realizaram o assassinato brutal e cruel de um jornalista revela quão intensamente os EUA se envolveram com um país autocrático ao mesmo tempo que seus agentes cometiam abusos hediondos de direitos humanos.

Também chama a atenção para os perigos das parcerias militares com governos repressores e demonstra quão pouco controle ou fiscalização é exercido sobre essas forças depois que retornam a seus países.

Problemas desse tipo devem continuar presentes na medida em que empresas privadas americanas que prestam serviços militares se voltam cada vez mais a clientes no exterior para incrementar seus negócios diante da redução das operações militares americanas no exterior após duas décadas de guerra.

O Departamento de Estado concedeu licença ao Tier 1 Group para oferecer treinamento paramilitar à Guarda Real Saudita inicialmente em 2014, durante a administração Obama. O treinamento prosseguiu durante pelo menos o primeiro ano do mandato do ex-presidente Donald Trump.

Louis Bremer, executivo sênior da Cerberus, a empresa mãe do Tier 1 Group, confirmou no ano passado o papel exercido por sua companhia no treinamento dos sauditas em respostas escritas a perguntas de parlamentares —parte do processo de sua indicação a um cargo alto no Pentágono na gestão Trump.

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Ao que parece, a administração não enviou o documento ao Congresso antes de retirar a indicação de Bremer, tanto que os parlamentares nunca chegaram a receber respostas às suas perguntas.

Bremer deu o documento ao New York Times. Nele, disse que quatro membros da equipe que executou Khashoggi receberam treinamento do Tier 1 Group em 2017 e que dois deles participaram de uma versão anterior do treinamento realizada entre outubro de 2014 e janeiro de 2015. “O treinamento ministrado não teve relação com seus subsequentes atos hediondos”, disse Bremer em suas respostas.

Ele disse que uma revisão realizada pelo Tier 1 Group em março de 2019 “não trouxe à tona nenhuma irregularidade cometida pela companhia e confirmou que o currículo regular do treinamento não teve relação com o assassinato de Jamal Khashoggi”.

A notícia de que membros da equipe que assassinou Khashoggi receberam treinamento nos EUA foi divulgada inicialmente na coluna de David Ignatius, do Washington Post, em 2019. Ignatius escreveu que a CIA avisou outras agências governamentais que algum treinamento em operações especiais pode ter sido ministrado pelo Tier 1 Group sob licença do Departamento de Estado.

Essa questão foi um ponto fundamental na audiência de confirmação de Bremer e nas perguntas enviadas pelos senadores em busca de saber que papel, se algum, o Tier 1 Group exerceu no treinamento dos sauditas que participaram da operação contra Khashoggi.

O porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, negou-se a confirmar se concedeu licenças ao Tier 1 Group para o treinamento dos sauditas: “Esta gestão insiste que nossos aliados e parceiros utilizem de modo responsável equipamentos e treinamentos de defesa de origem americana e, se ocorrem violações, considera respostas apropriadas”, disse o porta-voz. “A Arábia Saudita enfrenta ameaças significativas a seu território, e estamos engajados em cooperar com Riad para ajudá-la a fortalecer suas defesas.”

Um representante da embaixada saudita em Washington não deu declarações sobre o assunto.

No ano passado, Trump estudou a possibilidade de instalar o presidente da Cerberus, Stephen A. Feinberg, em um alto cargo de inteligência, mas a indicação não chegou a ser feita. Embora a administração Trump tivesse o indicado para liderar o Conselho Presidencial de Assessoria em Inteligência em 2018, surgiram dúvidas quanto a potenciais conflitos de interesse. A Cerberus era proprietária anterior da empreiteira militar DynCorp, que, entre outros serviços, presta consultoria em inteligência aos EUA e outros clientes.

Não está claro quais dos membros da equipe que executou Khashoggi participaram do treinamento do Tier 1 Group. Sete membros integravam uma unidade de elite encarregada de proteger MbS, segundo um relatório de inteligência dos EUA sobre o assassinato, que foi tirado da confidencialidade em fevereiro.

Khashoggi foi morto dentro do consulado saudita em Istambul em outubro de 2018 e esquartejado com um instrumento cirúrgico utilizado para cortar ossos. O assasinato levou à vasta reprovação de MbS, que negou ter tido qualquer conhecimento da operação.

Oito réus foram sentenciados a até duas décadas de prisão no ano passado, mas defensores dos direitos humanos criticaram as punições, dizendo que elas visaram agentes de nível inferior, poupando os líderes.

A CIA concluiu que o príncipe herdeiro dirigiu a operação, mas Trump disse que as evidências eram inconclusivas e que o relacionamento diplomático e econômico com a Arábia Saudita tinha prioridade.

Depois de Joe Biden chegar à Presidência e discutir a questão com seus assessores, antes da divulgação do relatório de inteligência tirado da confidencialidade, a Casa Branca anunciou a imposição de sanções sobre sauditas envolvidos no assassinato, incluindo membros da unidade de elite que protege MbS, mas optou por não punir o príncipe herdeiro diretamente.

A versão anterior do treinamento, que ocorreu durante a administração Obama, aconteceu antes de MbS consolidar seu poder no reino. Seu predecessor como príncipe herdeiro, Mohammed bin Nayef, era aliado estreito dos EUA, em especial de John Brennan, que foi diretor da CIA sob o presidente Barack Obama.

O príncipe bin Nayef foi chefe de contraterrorismo saudita e cooperou estreitamente com membros da administração Obama em esforços para desarticular a Al Qaeda na Península Arábica, filial iemenita da organização terrorista. Em 2017, MbS afastou Mohammed bin Nayef do poder e executou uma campanha ampla para arrancar o poder de seus rivais, incluindo um episódio notório em que empresários e membros da família real saudita foram aprisionados no hotel Ritz-Carlton em Riad.

A administração Trump encarou MbS como parceiro valioso no Oriente Médio —especialmente para estratégia da administração de isolar o Irã—, e o príncipe herdeiro desenvolveu um relacionamento estreito com Jared Kushner, o genro do presidente, que exerceu o papel de assessor sênior de Trump.

Filho do rei Salman, MbS é o primeiro na linha de sucessão do trono saudita. Mohammed bin Nayef permanece em prisão domiciliar no país. O site do Tier 1 Group lista várias operações especiais e unidades de inteligência dos EUA como clientes, além de “unidades especializadas que não requerem reconhecimento”. Diz também que treina “equipes de operadores especiais OGA” —codinome para unidades paramilitares da CIA—, além de “forças aliadas internacionais”.

O Tier 1 Group foi fundado para treinar militares americanos, aproveitando um orçamento ampliado do Pentágono para o treinamento em habilidades básicas de contra-insurgência, de acordo com ex-autoridades americanas que estão a par de suas operações.

As decisões sobre concessão de licenças a firmas americanas para treinar agentes estrangeiros geralmente são tomadas após receber o parecer de diversas agências governamentais, disse R. Clarke Cooper, secretário assistente de Estado para assuntos político-militares durante a administração Trump.

Segundo ele, o Pentágono e as agências de inteligência muitas vezes participam das decisões: “Estas coisas não saem do nada”. Cooper disse que, mesmo após o assassinato de Khashoggi, não se lembra de qualquer menção ser feita a treinamento dado pelo Tier 1 Group a sauditas. Ele disse que houve discussões intensas dentro da administração Trump sobre como reagir ao assassinato, depois de o governo concluir que o mais provável era que o príncipe herdeiro o teria aprovado.

No final, disse Cooper, a administração não quis desperdiçar o relacionamento dos EUA com a Arábia Saudita —e a estratégia de isolar o Irã—, adotando uma abordagem que repreendesse os sauditas após a morte de Khashoggi. “Nenhum governo jogaria no lixo um relacionamento bilateral importante em função deste crime, por mais hediondo tenha sido”, disse ele.

Tradução de Clara Allain

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