Biden e Putin concordam em discordar durante cúpula pragmática

Reunião teve pequenos avanços previsíveis, e russo saiu em vantagem sobre Ucrânia

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São Paulo

Em um encontro que durou menos do que o antecipado, os presidentes Joe Biden e Vladimir Putin concordaram em discordar sobre temas já conhecidos, mas estrelaram em Genebra nesta quarta (16) uma cúpula descrita por ambos como "construtiva e pragmática".

Parece pouco, e talvez seja. Mas se o temor na Europa era de que houvesse uma invasão russa da Ucrânia em abril, com ameaças de todo tipo de lado a lado, é possível ver na primeira reunião Biden-Putin algum avanço.

Os presidentes de Rússia, Vladimir Putin, à esq., e EUA, Joe Biden, cumprimentam-se antes de reunião de cúpula em Genebra, na Suíça
Os presidentes de Rússia, Vladimir Putin, à esq., e EUA, Joe Biden, cumprimentam-se antes de reunião de cúpula em Genebra, na Suíça - Brendan Smialowski/AFP

Fosse boxe o esporte em questão, o resultado da reunião de cerca de três horas e meia, até cinco horas no plano da Casa Branca, seria um empate técnico ou uma apertada vitória por pontos para o russo.

Os motivos são dois dos temas espinhosos discutidos, a supracitada Ucrânia e os ataques cibernéticos.

Tanto Putin quanto Biden reafirmaram suas posições sobre o país de Volodimir Zelenski, com o americano sendo enfático na sua entrevista coletiva acerca do que já havia dito: os EUA defendem a soberania ucraniana, violada por rebeldes pró-Rússia que ocupam seu leste com o apoio do Kremlin desde 2014.

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Já o russo lembrou sua visão, segundo a qual o Ocidente apoiou um "golpe sangrento" contra seu aliado Viktor Ianukovitch, então presidente ucraniano, o que o levou a anexar a Crimeia e a fomentar a guerra civil na região do Donbass.

Mas ambos falaram a mesma língua ao citar soluções para o problema: que elas sejam baseadas nos Acordos de Minsk. Costurados em 2014 e 2015, eles preveem a devolução do controle do leste para Kiev, mas mantendo um grau de autonomia, algo inaceitável para a elite política ucraniana.

Com a recente troca pouco amistosa de palavras entre Biden e Zelenski, que quer acelerar uma hoje inviável entrada da Ucrânia na Otan (aliança militar ocidental), o cheiro de queimado deve ter sido sentido em Kiev.

Já no tema dos ataques cibernéticos, que são atribuídos aos russos nas eleições de 2016 e 2020, mas também nas ações contra órgãos governamentais americanos no ano passado, Biden foi ambíguo.

Disse que "Putin sabe como nós iremos agir" se houver novos ataques. Já o russo simplesmente negou quaisquer responsabilidades. E ambos concordaram em iniciar conversas para estabelecer padrões de segurança e reação contra ameaças futuras.

Tal parceria não parece exatamente uma grande ameaça ao Kremlin, depois de anos sendo acusado de vandalismo virtual, ainda que Biden tenha mantido seu discurso usual de que "as consequências serão devastadoras para a Rússia" se houver algum novo episódio.

Nada sobre o passado, mas também não foi a repetição da genuflexão de Donald Trump em seu encontro com Putin em 2018, quando o republicano apenas aceitou a versão do russo de que ele não patrocinava nada errado no campo virtual.

Aí entra a definição de pragmatismo usada pelos dois líderes. O americano insistiu que "direitos humanos sempre estarão sobre a mesa, isso é o que somos", citando especificamente o caso do líder opositor russo preso Alexei Navalni.

Putin, questionado por repórteres, chamou o adversário doméstico apenas de "aquele senhor" e disse que ele está pagando por ações deliberadas de desafio às leis russas.

Ato contínuo, delineou exatamente o que se esperava dele: desenhar como o Kremlin vê o apoio dos EUA a grupos opositores, agora quase todos classificados como agentes estrangeiros e sujeitos a leis mais duras, como uma forma de interferência externa.

Mais, os comparou aos vândalos de extrema direita que atacaram o Capitólio em nome de Trump no dia 6 de janeiro. "Eu repito o que disse a ele: tais comparações são ridículas", respondeu Biden.

Todas são falas firmes. O americano disse ter insistido na liberdade de imprensa e nos direitos humanos, enquanto Putin voltou ao tema de que apenas reage a provocações externas. Essa "ocidentefobia" encaixa à perfeição na campanha repressiva em curso na Rússia.

E o russo ainda tinha o ás da resposta pronta. "Quem é o assassino? Guantánamo segue aberta", disse, juntando na mesma frase a acusação feita a si por Biden e a notória prisão americana em Cuba, onde a lei não alcança os presos.

Na prática, aqui o empate a que todos se propuseram se consolidou. Biden poderá dizer que foi durão, falou tudo na cara de Putin e o alertou sobre suas "linhas vermelhas", e o russo afirmará que explicitou as contradições intrínsecas ao discurso americano e que fica onde está.

Houve alguns avanços pontuais. Além da questão cibernética, também como esperado, ambos os presidentes concordaram em estabelecer conversas para aprimorar os mecanismos de controle de armas nucleares.

Donos de 90% dos arsenais do planeta, Rússia e EUA já haviam acertado a extensão do principal acordo do setor quando Biden assumiu, revertendo a política de Trump. Agora, devem avançar a novas tecnologias, como mísseis hipersônicos.

No mais, os países retomarão atividades diplomáticas normais, depois que elas foram degradadas na esteira da saída dos embaixadores de volta a suas nações para consultas.

Isso no que foi público, claro. Há diversos temas que podem ter sido abordados em algum detalhe, como Afeganistão, Irã e, claro, a China, que Biden vê como sua verdadeira rival e para quem ele dedicou seu esforço maior nessa viagem à Europa —obtendo posições duras contra Pequim do G7 e da Otan.

Apesar de Putin falar em "vislumbre de esperança" e que ele e o americano falaram "a mesma linguagem", sem hostilidade, é previsível que por ora as coisas fiquem como estão.

Para observadores, é melhor do que qualquer rompimento, embora uma fala ao pé da escada do avião presidencial americano tenha traído o que Biden acha da Rússia: "Acho que ela está numa posição difícil". Economicamente, ele está coberto de razão. "Ele não quer uma Guerra Fria", disse, acertando.

Como em todos os encontros do tipo, a cúpula foi coalhada de pequenos aspectos simbólicos.

A organização pôs Putin como o primeiro a chegar ao palacete Villa La Grange, dando ao russo uma precedência que lhe agradaria —mas também evitando que ele deixasse Biden esperar, como já fez com vários líderes mundiais.

O russo chegou às 13h04 (8h04 em Brasília), quatro minutos depois do previsto. Biden chegou 15 minutos depois, e ambos foram recebidos pelo presidente suíço, Guy Parmelin. Às 13h25, após um breve comunicado de boas-vindas do anfitrião, os rivais foram deixados a sós para a foto do aperto de mãos.

Ele foi até efusivo, embora Putin parecesse mais interessado em se virar para as câmeras. Já 11 minutos depois, postados com os chanceleres Serguei Lavrov e Anthony Blinken na bela biblioteca do palacete, o clima era outro.

Visivelmente incomodados pela balbúrdia de fotógrafos e cinegrafistas, os dois mal se olharam. Biden teve de esclarecer por meio de sua porta-voz que não havia dito que "concordava com Putin", ao menear a uma pergunta inaudível de um repórter. O russo balbuciou algo sobre desejar uma reunião produtiva, e o americano desejou que ela fosse "previsível", para marcar a diferença.

Os presidentes de EUA, Joe Biden, à esq., e Rússia, Vladimir Putin, na biblioteca da Villa la Grande, em Genebra, na Suíça
Os presidentes de EUA, Joe Biden, à esq., e Rússia, Vladimir Putin, na biblioteca da Villa la Grande, em Genebra, na Suíça - Denis Balibouse/AFP

A linguagem corporal era óbvia: o russo adotou sua usual posição de macho eslavo entediado, esparramado na cadeira com as pernas afastadas. Já Biden, que tentava esboçar sorrisos às câmeras, cruzou as pernas numa atitude mais fidalga.

Era parte do show, claro, até porque imagens posteriores sugeriam os dois líderes com feições mais descongestionadas.

A primeira rodada de conversa, com os quatro e intérpretes, acabou em cerca de duas horas. Houve um intervalo de 45 minutos, e todos foram para uma outra sala. Depois, as conversas foram expandidas por cerca de uma hora, com cinco assessores ao lado de cada presidente.

O fato de o russo ter concedido a primeira entrevista coletiva refletiu a estratégia inicial do americano, que foi quem convocou a cúpula: dar destaque a Putin e, ao mesmo tempo, garantir a palavra final do dia.

Se o líder do Kremlin driblou as questões mais duras, o fato de ele ter alongado a conversa por uma hora e insistido que elas fossem feitas chamou a atenção.

Num momento particularmente inusual para o padrão bovino da imprensa russa, a repórter Rachel Scott (ABC News, EUA) disse que os opositores de Putin estão presos ou mortos e sapecou: "Do que o senhor tem medo?".

O russo, 68 anos de idade e 21 de poder, atirou de volta rumo aos EUA e ficou por isso, mas não é todo dia que ele é submetido a esse tipo de inquisição.

Já Biden, dez anos mais velho e há cinco meses no cargo, impressionou negativamente, recusando-se a responder uma pergunta final acerca de sua impressão sobre Putin —a quem chamou de desalmado anteriormente—, provocando a ideia de que quem é visto como autocrata não é o russo.

Foi a trigésima vez que líderes da Casa Branca e do Kremlin se encontram após a Segunda Guerra Mundial, incluindo aí os tempos da União Soviética. Putin participou de quatro dessas cúpulas.

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