Descrição de chapéu Portugal Coronavírus

Mesmo autorizados, brasileiros irregulares em Portugal relatam dificuldades para se vacinarem

Imigrantes não conseguem se cadastrar no sistema de saúde do país, etapa obrigatória para receberem imunizante

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Lisboa

Embora o governo de Portugal tenha anunciado o acesso gratuito à vacina contra a Covid também para imigrantes (regularizados ou não), estrangeiros no país relatam obstáculos para conseguirem se imunizar.

Em grupos nas redes sociais e em consultas a associações de apoio, imigrantes dizem enfrentar recorrentes dificuldades para se vacinar. Os problemas foram admitidos pelo coordenador da força-tarefa de vacinação, o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo. Em audiência no Parlamento na semana passada, ele afirmou que está sendo desenvolvido um plano especial voltado aos estrangeiros.

Pessoas aguardam para receber a vacina em centro de imunização na cidade de Seixal, em Portugal
Pessoas aguardam para receber a vacina em centro de imunização na cidade de Seixal, em Portugal - Pedro Nunes - 22.mar.21/Reuters

Pessoas em situação migratória irregular são as mais afetadas, mas estrangeiros com a documentação em dia também relatam empecilhos burocráticos. O maior gargalo para o acesso à vacinação —e aos cuidados de saúde em geral— é a dificuldade para a obtenção do chamado número de utente: o código de identificação dos cidadãos no Sistema Nacional de Saúde, o SUS português.

Ainda no começo da pandemia, o governo anunciou a regularização temporária dos estrangeiros com pedidos pendentes junto ao Serviço de Estrangeiros e Fronteira. A medida, de caráter humanitário, foi tomada justamente para garantir acesso aos cuidados de saúde e à vacina nas mesmas condições de um cidadão português. Cerca de 223 mil estrangeiros foram impactados pela medida —os dados por país ainda não foram divulgados, mas os brasileiros foram a nacionalidade mais beneficiada.

O despacho oficial diz explicitamente que o processo de regularização em andamento já é suficiente para a “obtenção do número de utente, acesso ao Serviço Nacional de Saúde ou a outros direitos de assistência à saúde”. Na prática, porém, isso nem sempre acontece.

A emissão do número de utente fica a cargo dos centros de saúde locais, que verificam os documentos dos estrangeiros e atribuem o respectivo código a cada um. Como não há um procedimento uniformizado para esse processo, a concessão da inscrição acaba variando entre as unidades, jogando muitos imigrantes em um labirinto burocrático: eles têm direito a receber o imunizante, mas não conseguem realizar o agendamento prévio, etapa obrigatória em Portugal.

Mesmo que a pessoa já esteja na faixa etária abrangida pela fase da vacinação, o sistema de autoagendamento exige o preenchimento do número de utente para concluir o processo. Diante das limitações causadas pela ausência do número de identificação, o governo lançou, em março, uma página especial em que estrangeiros sem número de utente podem se cadastrar para receber a vacina.

Nesses casos, os interessados deixam o nome e o telefone para que algum responsável entre em contato para agendar a vacina. O atendimento aos inscritos, entretanto, caminha lentamente. O coordenador da força-tarefa de vacinação se reuniu recentemente com representantes de diversas entidades de auxílio a migrantes para discutir uma maneira eficaz de incorporar os estrangeiros na estratégia de imunização.

“Estamos a estabelecer um plano, e é precisamente por meio das associações que queremos trazer estes migrantes irregulares e que têm alguma desconfiança do processo de contato com as autoridades”, afirmou Gouveia e Melo, na terça-feira (23), em audiência com deputados.

Cyntia de Paula, presidente da ONG Casa do Brasil em Lisboa, foi uma das presentes no encontro. “O governo criou uma plataforma para quem não tem número de utente, mas o que nós recebemos de retorno da nossa comunidade, e também de outras, é que ninguém foi contactado por meio dela”, disse.

“Mas achei uma boa iniciativa da força-tarefa. Eles vieram até as associações para nos ouvir, para traçarmos uma estratégia comum para fazer as pessoas se inscreverem. Do nosso ponto de vista, os brasileiros estão se inscrevendo, mas não estão sendo chamados”, completou ela.

Até a manhã desta segunda (28), o Ministério da Saúde de Portugal não respondeu ao questionamento de quantos estrangeiros sem número de utente se inscreveram para a vacinação —e quantos efetivamente foram vacinados. Um motorista de aplicativos de entrega que está entre os contemplados pela regularização temporária chorou ao relatar as dificuldades para conseguir o número de utente e disse ter muito medo de ficar doente —ele, que tem 47 anos, pediu para não ser identificado.

Em Portugal há dois anos, o motorista afirmou que já perdeu as contas da quantidade de emails e de idas ao centro de saúde em busca do documento. A pouco mais de uma semana da abertura da vacinação para sua faixa etária, o cabeleireiro paulista Fabio Silva, 27, também em processo de regularização, é outro que não consegue o número de utente. Ele deu entrada no pedido em janeiro.

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“Pago os impostos sem nunca atrasar. Não estou pedindo um favor, é um direito. Graças a Deus eu tenho condições de pagar um plano de saúde, porque tenho medo de acontecer alguma coisa e ficar na mão.”

O sistema português de saúde pública é universal, mas não é gratuito, ainda que o governo subsidie a maior parte do custo final. Nacionais e estrangeiros com número de utente podem se beneficiar da coparticipação, mas quem está em situação irregular por vezes é cobrado com o preço cheio da tabela.

Embora esteja com visto válido em Portugal, Luciana Lopes, 48, enfrentou uma peregrinação para conseguir o número de utente. Em Lisboa para uma pós-graduação na área de comunicação, com autorização de permanência no país de um ano, ela viu seu pedido negado por várias vezes. “Me deram um número provisório para atendimentos de doença aguda, mas esse número não entra no formulário para marcar a vacina. Preenchi outro formulário para quem não tem o utente, mas nunca obtive resposta.”

Luciana disse que, ao notar que a vacinação já estava na faixa dos 30 anos (ela tem 48), chegou a cogitar ir para a França para ter acesso ao imunizante. “Depois de muitas ‘patadas’ de atendentes, consegui falar com um anjo que me ajudou. Ela me encaminhou para o posto de vacinação e me ajudou ao falar com o colega de lá para concluir meu agendamento e ser vacinada”, completou. A disposição de funcionários mais sensibilizados às dificuldades burocráticas tem sido decisiva, de acordo com vários relatos.

Segundo a presidente da Casa do Brasil em Lisboa, a entidade tem tentado intermediar alguns contatos com centros de saúde, informando as equipes sobre os direitos dos migrantes.

Com quase 50% da população com ao menos uma dose da vacina contra a Covid-19 e 28,4% com a imunização completa, Portugal, com cerca de 10 milhões de habitantes, tenta agora acelerar a vacinação como forma de frear uma quarta onda da doença.

Uma das iniciativas para aumentar a taxa de vacinação foi a possibilidade, a partir desta semana, de imunização sem agendamento prévio em alguns centros específicos.

Na manhã desta segunda, alguns estrangeiros que não conseguiram marcar a vacina pelo sistema de autoagendamento se dirigiram para a unidade que deveria inaugurar o novo sistema. A iniciativa, porém, foi adiada e só vai começar a valer a partir de quinta (1º). Além disso, o horário de atendimento para essa modalidade será restrito, funcionando apenas das 19h às 21h.

Com casos em alta, Portugal registrou, na sexta-feira (25), 1.604 novas infecções por coronavírus. Trata-se da cifra mais alta desde 19 de fevereiro. Especialistas associam o aumento das infecções à rápida disseminação da variante delta, identificada primeiro na Índia. Mais transmissível do que as anteriores, a cepa já é responsável por mais de 60% dos casos na região de Lisboa.

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