Derretimento de geleiras expõe relíquias congeladas da Primeira Guerra Mundial

Pesquisadores entram em alojamentos ocupados por soldados austro-húngaros nos Alpes italianos

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Jacey Fortin
The New York Times

Relíquias da Primeira Guerra Mundial que passaram muitos anos congeladas estão vindo à tona devido ao derretimento e recuo de geleiras nos Alpes no norte da Itália.

Há canecas, latas, cartas, armas e ossos dos quais foi sugado o tutano. Os objetos foram encontrados em alojamentos militares situados em cavernas perto do pico gelado do Monte Scorluzzo, no norte da Itália, perto da Suíça. O pico tem mais de 3.000 metros de altura.

Com derretimento de neve, caixa de munições da Primeira Guerra foi encontrada cheia de gelo
Com derretimento de neve, caixa de munições da Primeira Guerra foi encontrada cheia de gelo - White War Museum/Adamello/The New York Times

Os soldados austro-húngaros que ocuparam esses alojamentos combateram as tropas italianas na chamada Guerra Branca. Ali nos Alpes —distantes do mais famoso front ocidental, que foi palco de uma sangrenta guerra de trincheiras entre a Alemanha e a França—, as tropas escalaram as montanhas até uma altitude perigosa, sob temperatura gelada, para criar fortificações no meio do gelo e da pedra.

As condições climáticas que puseram os soldados à prova sobre o Monte Scorluzzo acabaram preservando seus alojamentos, congelando a entrada e fechando-a depois que os militares abandonaram seu posto ao término da guerra, em 1918.

A estrutura permaneceu essencialmente impenetrável durante décadas —até 2017, quando uma parte suficiente do gelo e da neve havia derretido para permitir que pesquisadores entrassem. Agora o gelo foi retirado dos alojamentos, revelando os objetos que foram deixados para trás e proporcionando um vislumbre melhor das pessoas que habitaram esse espaço apertado mais de um século atrás.

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Situados no Parque Nacional Stelvio, os alojamentos são “uma espécie de máquina do tempo”, segundo Stefano Morosini, historiador que coordena projetos relacionados ao patrimônio histórico-cultural no parque e leciona na Universidade de Bergamo, na Itália. “Nosso interesse não é apenas histórico —é também científico”, explicou. “Como era a poluição? Quais eram as condições epidemiológicas nos alojamentos? Como os soldados dormiam e como eles sofriam? Do que se alimentavam?”

Muitas das relíquias descobertas serão expostas em um museu previsto para ser aberto em 2022 na cidade de Bormio, segundo Morosini. Já existe outro museu dedicado à Guerra Branca, este na cidade vizinha de Temù, e profissionais desse primeiro museu estão trabalhando agora para restaurar as relíquias encontradas nos alojamentos dos militares.

Luca Pedrotti, um coordenador científico do parque, disse que as relíquias encerram lições não apenas históricas, mas de ciência ambiental. O frio extremo matou soldados no norte da Itália mais de um século atrás. Hoje, as condições meteorológicas mais quentes criam um tipo diferente de risco.

Pedrotti, que viveu no parque quando era criança, contou que observou as geleiras recuando ao longo de décadas. Ele observou mudanças na flora e notou que os animais que gostam do frio se deslocaram para os picos das montanhas, procurando continuar nas zonas habitáveis, que continuam a encolher. “Acho importante usarmos o parque como área de estudos para conscientizar a população sobre a mudança climática”, disse ele.

Acredita-se que a maioria dos soldados mortos na Guerra Branca morreu não apenas em combates, mas devido ao meio ambiente. Seus postos avançados remotos eram difíceis de abastecer com alimentos e equipamentos, e avalanches eram frequentes nas montanhas nevadas, varridas por ventos fortes.

“Aqui os homens passam seus dias envoltos em peles felpudas, com gordura animal espalhada sobre o rosto para protegê-los contra as rajadas de vento geladas, que doem como pontadas. E passam as noites em buracos que abrem na neve”, escreveu o correspondente de jornal E. Alexander Powell em um livro publicado em 1918, “Italy at War”.

“Em nenhuma outra frente o combatente leva uma existência tão árdua quanto aqui no telhado do mundo. Não nas planícies esturricadas de sol da Mesopotâmia, nem nos pântanos congelados da Masúria [na Polônia], tampouco no lodo ensanguentado de Flandres.”

Não foram encontrados restos mortais nos alojamentos militares, embora corpos congelados de pessoas que lutaram na Guerra Branca tenham sido descobertos nas proximidades. Mas, segundo Alessandro Nardo, diretor do parque nacional, os pesquisadores encontraram pelo menos um sinal de vida.

“Quando cheguei aqui para administrar o Parque Nacional Stelvio, no final de 2018, uma das primeiras coisas que chamou a minha atenção foi um vasinho sobre uma mesa com um gerânio verde silvestre”, contou. “Perguntei a meu colega o que era, e ele disse que a planta germinou de sementes encontradas nos colchões do alojamento militar de Scorluzzo.”

Tradução de Clara Allain

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