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Em Nova York, menino de sete anos é acusado de estupro; prendê-lo é a resposta?

Mais da metade dos estados dos EUA não conta com idade mínima para processo ou detenção

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Sarah Maslin Nir
The New York Times

Em uma área florestal perto da fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, a polícia estadual deteve neste ano um morador do vilarejo de Brasher Falls, no estado de Nova York, cuja população é de cerca de mil pessoas. O morador foi acusado de estupro.

A dor causada por esse tipo de crime muitas vezes dilacera uma cidade pequena, mas não se estende para além de seus limites. Mas depois da detenção, em 23 de março, as notícias sobre a prisão se espalharam muito além do vilarejo. O morador acusado de estupro tinha sete anos de idade.

Pouco se sabe sobre as circunstâncias da detenção, detalhes das acusações ou como o caso foi resolvido. Os registros de episódios envolvendo crianças são sigilosos. Mas em Nova York, a detenção despertou outra vez uma discussão sobre como o sistema de Justiça lida com os chamados delinquentes juvenis –crianças de 7 a 18 anos cujos processos são julgados em tribunais de família.

Juízes, especialistas em Justiça juvenil e advogados que lidaram com casos como esse, do lado da acusação e do lado da defesa, dizem que as detenções traumatizam as crianças, as enredam no sistema judiciário e tornam a reincidência mais provável. Crianças pequenas raramente são acusadas como adultos. Mas detê-las e acusá-las, de qualquer maneira que seja, dizem aqueles que estudam a questão, ignora os fatos científicos sobre o desenvolvimento do cérebro, e o esforço por obter justiça muitas vezes produz o resultado oposto.

“O que sabemos agora é que a ciência não sustenta que crianças de segunda série sejam julgadas”, disse Dawne Mitchell, que comanda a área de direitos juvenis na Legal Aid Society, uma organização de assistência judicial. Mencionando trabalhos de ciência cognitiva que demonstram que crianças pequenas não têm consciência real das consequências de suas ações e que enfatizam o trauma psicológico causado quando são algemadas e processadas, Mitchell é um dos muitos especialistas, espalhados por todo o país, que estão instando os estados a elevar a idade mínima para esse tipo de processo.

O incidente em Brasher Falls, em novembro, e um vídeo que mostra policiais algemando e usando spray de pimenta contra uma menina de nove anos, na traseira de um carro de polícia em Rochester, em janeiro, chamaram a atenção mais uma vez para um projeto de lei que está tramitando no Legislativo estadual de Nova York.

O projeto elevaria a idade mínima para que uma criança possa ser processada como delinquente juvenil a 12 anos, ante sete atualmente (exceto para acusações de homicídio), e encaminharia casos envolvendo crianças mais novas para os serviços sociais e outros departamentos.

A proposta se segue a um movimento semelhante para elevar a idade a partir da qual pessoas podem ser acusadas criminalmente como adultos. Em 2019, o estado de Nova York concluiu uma implementação gradual que eleva dos 16 para os 18 anos a idade na qual adolescentes podem ser acusados como adultos por delitos e crimes menores.

A tentativa para mudar a chamada idade de delinquência vem avançando mais devagar.

A despeito de existir um consenso aparentemente amplo –que inclui um apelo das Nações Unidas, em 2018, para que os países elevem a idade mínima dos acusados em julgamentos criminais para 14 anos–, o projeto não ganhou muito ímpeto legislativo. Isso acontece em parte porque o número de casos criminais abertos contra crianças pequenas é relativamente baixo, disse N. Nick Perry, deputado estadual por Brooklyn, Nova York, que foi um dos proponentes do projeto quando ele foi apresentado, em 2018.

“Não há muitas crianças de sete anos que se vejam arrastadas a acusações criminais sérias”, disse Perry, que diz acreditar que a lei deva ser aprovada na atual sessão do Legislativo. “Se algo grave não atrai a atenção para a necessidade de atualizar ou mudar a lei, ela tenderá a continuar como é, por mais inapropriada que seja.”

Mas outros estados começaram a promover mudanças em suas leis. Em 2018, Massachusetts elevou a idade mínima para os acusados em processos criminais de sete para 12 anos. Recentemente, o Mississipi promulgou uma lei que eleva a idade em que crianças podem ser encaminhadas a instalações de detenção de 10 para 12 anos. Projetos de lei semelhantes estão sendo considerados em mais de meia dúzia de estados americanos.

Ainda assim, mais da metade dos estados dos Estados Unidos não conta com idade mínima para processo ou detenção. Dos que o fazem, só a Carolina do Norte, que permite que crianças a partir de seis anos sejam processadas como delinquentes, tem um limite mais baixo que o de Nova York.

Alguns meses atrás, na Carolina do Norte, um menino de seis anos foi detido e levado ao tribunal depois de pegar uma tulipa, quando estava esperando em um ponto de ônibus, de acordo com uma reportagem do jornal Herald-Sun, da cidade de Durham.

O caso foi encerrado sem acusação, mas causou furor. “Uma criança que acredita no Papai Noel, no Coelhinho da Páscoa e na fada dos dentes deveria ser considerada capaz de decisões que podem alterar sua vida?”, perguntou J.H. Corpening, o juiz que preside o tribunal distrital do condado de New Hanover, expressando sua convicção de que crianças dessa idade não têm consciência das consequências de comportamentos que podem ser classificados como criminosos. A Carolina do Norte também está estudando mudar sua lei.

A proposta em Nova York para encaminhar crianças menores de 12 anos e acusadas de crimes sérios a agências do serviço social de certa forma codificaria o que os especialistas dizem já ocorrer com frequência.

No estado de Nova York, por exemplo, das centenas de crianças de menos de 12 anos que foram detidas em 2019, apenas 121 casos se tornaram processos em tribunais de família, de acordo com registros obtidos pelo Children’s Defense Fund-New York, divisão nova-iorquina da organização nacional de assistência judicial.

As detenções de crianças também costumam afetar determinadas raças de maneira desproporcional. Em 2019, mais de 90% das crianças dos sete aos 11 anos de idade detidas na cidade de Nova York eram negras ou hispânicas, de acordo com dados fornecidos pela Legal Aid, ainda que esses grupos representam apenas 57% da população de crianças da cidade.

Crianças brancas, dizem os especialistas, têm probabilidade maior de serem encaminhadas a terapeutas ou devolvidas a seus pais, por comportamentos semelhantes aos que causam a prisão de crianças negras, um padrão que se reproduz em todo o país.

Parece haver pouca, se alguma, oposição organizada à elevação da idade de delinquência. Mas aqueles que resistem dizem que fazê-lo restringiria as ações do sistema judicial, de acordo com Jeffrey Butts, diretor do Centro de Pesquisa e Avaliação do John Jay College of Criminal Justice. Em raros casos que envolvem crianças particularmente perigosas, diz ele, o encarceramento pode impedir que elas se tornem um risco para outros.

“Sempre haverá casos em que as autoridades não têm os recursos necessários”, disse Butts. “Qualquer limite estabelecido por lei é um compromisso que basicamente reconhece que não temos um sistema legal capaz de tomar decisões complexas”.

Muitas pessoas que estudam a Justiça juvenil dizem que os jovens acusados são frequentemente vítimas de abusos. Quando criança, a raiva que Charles Rice sentia pelos abusos físicos e sexuais que ele diz ter sofrido em casa irrompia na escola, em surtos violentos.

Uma tarde, enquanto estava trabalhando em uma escultura de arame na aula de arte da quinta série, em sua escola elementar em Syracuse, no estado de Nova York, ele entrou em uma briga com um colega. O professor interveio, e Charles pegou um dos instrumentos que estava usando na aula de arte –um estilete– e cortou o professor. Rice, que é negro, foi preso.

Ele passou oito meses em um centro de detenção juvenil. Rice, 31, agora defende jovens em risco e afirma acreditar que, se fosse branco, teria sido encaminhado a uma terapia. “Foi a criminalização da minha infância”, disse. “Meu comportamento era um pedido de ajuda, não de algemas.”

Em Massachusetts, nos três anos transcorridos desde que a nova lei entrou em vigor, não houve alta nas estatísticas de atividades criminosas praticadas por crianças, de acordo com Sana Fadel, diretora assistente da Citizens for Juvenile Justice, ainda que a carga de casos do sistema de tribunais juvenis tenha caído em 40%. As crianças estão sendo atendidas por programas de apoio cujo foco é a prestação de serviços sociais, disse ela.

“O sistema judicial está provavelmente cem anos atrasado, porque o teste aplicado usualmente é ‘você entende que isso é errado e aquilo é certo?’”, disse Jane Tewksbury, que trabalhou como procuradora pública em Massachusetts e posteriormente como comissária do departamento de serviços a jovens do estado. “Uma criança de quatro anos pode responder que sim, mas isso não quer dizer que, se ela apunhalou alguém com um lápis, sabia exatamente o que estava fazendo.”

Jane Tewksbury, ex-procuradora pública e ex-comissária do departamento de serviços a jovens do estado de Massachusetts
Jane Tewksbury, ex-procuradora pública e ex-comissária do departamento de serviços a jovens do estado de Massachusetts - Kayana Szymczak/The New York Times

Os procedimentos de um tribunal podem ser incompreensíveis para crianças pequenas. Quando Debbie Freitas, uma advogada de Lowell, no estado de Massachusetts, acompanhou um cliente de oito anos de idade a uma audiência com um magistrado, em 2018, por levar uma faca de manteiga para a escola, a criança perguntou: “Nossa, vamos ver o presidente?”, recordou Freitas.

“Eles são tão pequenos que não compreendem nem a base do que está acontecendo.”

Notícias sobre a detenção em Brasher Falls chocaram os moradores, disse Mark Peets, administrador do município. “Não dá para imaginar uma criança de sete anos sendo presa; você vê todos aqueles programas de ‘crime real’ na TV e nunca imagina que possam envolver uma criança de sete anos.”

Mas além da dor coletiva pela vítima, diz ele, também existe a sensação de que o jovem perpetrador precisa de ajuda. “Certo e errado existem, mas é preciso que haja algum protocolo de serviço social”, disse Peets, “alguma forma de lidar com isso sem que ele seja tratado quase como um adulto”.

Tradução de Paulo Migliacci

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