Cinco anos depois do referendo que selou sua saída da União Europeia, o Reino Unido encontra-se envolvido na “guerra das linguiças”, um conflito que ilustra a dificuldade de implantar o brexit e explica o mau humor dos britânicos com o desenrolar do divórcio.
Em pesquisa feita pelo instituto You.gov nesta segunda (21), 38% da população disse que a condução do brexit vai de ruim a péssima. Os satisfeitos com o andar da carruagem são 25%, enquanto outros 25% acham que a situação não é nem boa, nem ruim; 12% preferiram nem responder.
A chamada guerra das linguiças gira em torno do ponto mais sensível, politicamente, do acordo de retirada, o chamado Protocolo da Irlanda do Norte, negociado para evitar uma fronteira dura dentro da ilha irlandesa. Sem o acordo, seria preciso criar uma barreira de inspeções, já que a República da Irlanda pertence à UE, e a Irlanda do Norte, ao Reino Unido.
Bloquear passagens dentro da ilha, porém, seria soprar sobre as brasas ainda vivas do conflito entre norte-irlandeses que defendem a integração com a República da Irlanda e unionistas que se opõem a ela, uma tensão acomodada pelo acordo de paz da Sexta-Feira Santa, firmado em 1998, mas ainda latente.
A fórmula de compromisso entre as duas partes foi manter a Irlanda do Norte dentro do mercado único de bens do bloco europeu. Pelo acordo, assinado pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, a fiscalização passaria a ser feita na fronteira marítima entre a Grã-Bretanha (que inclui Inglaterra, Escócia e País de Gales) e a ilha irlandesa. E aqui entram as linguiças.
O alimento, assim como nuggets de peru ou almôndegas cruas, é considerado um “produto resfriado à base de carne”, e o bloco europeu só permite a importação desses artigos se estiverem congelados.
Desde que deixou a UE, em janeiro deste ano, o Reino Unido se viu portanto obrigado a congelar as almôndegas que vende para a Bélgica ou os nuggets que exporta para a Grécia, e a mesma regra deveria valer para as linguiças que envia para a Irlanda do Norte.
Como as novas regras e inspeções estavam congestionando portos e esvaziando gôndolas de supermercados, a UE concordou em dezembro com uma suspensão de seis meses na implantação dessa regra, para que a Irlanda do Norte reorientasse sua cadeia de abastecimento.
O prazo se encerraria no próximo dia 1º, mas eis que, a poucas semanas da data final, surge Boris posando para fotos com um colar de linguiças cruas e declarando que não poderá cumprir a regra. No Parlamento britânico, ele discursou prometendo fazer "tudo o que estiver a seu alcance" para “proteger a integridade territorial e econômica do país”.
"Tudo a seu alcance" começou com um pedido de nova carência, agora até o final de setembro, mas há quase nenhuma boa vontade dos europeus para aceitar mais esse recuo britânico, e a negociação ocorre aos trancos, enquanto crescem tensões políticas norte-irlandesas.
Não é pelas linguiças, ou não só por elas, disseram unionistas a Boris nas últimas semanas. Eles não aceitam a ideia de que a Irlanda do Norte seja tratada de maneira diferente do resto do Reino Unido e querem que os controles acordados no brexit sejam ignorados.
O premiê britânico jogou a bola para a quadra europeia, pedindo flexibilidade, mas a Comissão respondeu que já foi flexível em outros casos, como remédios ou carros usados. Se o premiê continuar jogando areia no acordo que assinou, afirmaram os negociadores da UE, a conversa passará para os tribunais.
Os europeus já afirmaram que a extensão unilateral do período de carência pelo Reino Unido viola a lei internacional, e uma decisão favorável a essa tese no Tribunal de Justiça Europeu pode impor multas substanciais aos britânicos.
A temperatura subiu tanto que a discussão chegou a contaminar parte das discussões durante o G7, fórum de sete entre as maiores potências industriais do mundo, com troca de farpas entre Boris e o presidente da França, Emmanuel Macron, e a intervenção do presidente norte-americano, Joe Biden (que tem antepassados irlandeses e ingleses).
Os vizinhos pressionam Boris a não perturbar o delicado equilíbrio do acordo da Sexta-Feira Santa, que encerrou três décadas de uma guerra civil responsável por 3.700 mortos na Irlanda do Norte.
A paciência da população com o vaivém da separação também é cada vez menor, mostram as sondagens do You.gov, que desde o referendo, em 23 de junho de 2016, pergunta se os britânicos consideram certo ou errado ter aprovado a saída da UE.
Ao longo desses cinco anos, a fatia dos que desaprovam o brexit cresceu, e a dos favoráveis, caiu, e no final do ano passado, pouco antes do término do período de transição, 51% lamentavam a saída, contra 40% que a consideravam a decisão correta.
Com o divórcio consumado, 49% dos britânicos afirmaram que, se o plebiscito fosse hoje, votariam em ficar, contra 37% em sair; os 13% restantes não responderam ou não sabem. Numa hipotética votação sobre a reinserção no bloco europeu, porém, 42% dizem que votariam a favor da volta à UE, apenas dois pontos à frente dos 40% contra a adesão (18% não deram preferência).
Enquanto políticos britânicos e europeus se chocavam em salas de reunião e a população desaprovava os rumos do brexit, um dos principais fundadores da União Europeia, o francês Robert Schuman (1886-1963), deu no último sábado (19) um primeiro passo para se tornar santo da Igreja Católica.
De acordo com um decreto publicado pelo Vaticano, o papa Francisco reconheceu as “virtudes heróicas” de Schuman —católico devoto— por seu papel na reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Fundada inicialmente por seis nações, a UE incorporou o Reino Unido em 1972 e chegou a 28 países em 2013. Após o brexit, tem hoje 27 membros.
Ter as virtudes reconhecidas é a primeira de três etapas antes da santidade no processo católico. As duas próximas, beatificação e canonização, exigem a comprovação de que Schuman foi capaz de realizar um milagre —palavra que nos últimos dias parece descrever bem a tarefa de manter a paz tanto no divórcio do brexit quanto na ilha irlandesa.
Datas do brexit
- 23.jun.2016 - em plebiscito, 52% dos britânicos votaram por deixar a União Europeia
- 29.mar.2017 - começou a contagem regressiva de dois anos para a saída formal do Reino Unido da UE —o brexit
- 14.mar.2019 - poucos dias antes de vencer o prazo de dois anos, o governo britânico pediu prorrogação; em 20 de março, a UE concorda em adiar a data para 30 de junho
- 2.abr.2019 - o Reino Unido pede nova prorrogação, e a data para o brexit passa a ser 31 de outubro de 2019
- 19.out.2019 - o governo britânico pede mais um adiamento; em 28 de outubro, a data é fixada em 31 de janeiro de 2020
- 12.dez.2019 - Boris Johnson vence eleição no Reino Unido sob o lema “vamos fazer o brexit de uma vez”
- 31.jan.2020 - o Reino Unido deixa a UE e começa um período de transição
- 9.set.2020 - Boris Johnson propõe a Lei do Mercado Interno, que fere regras acordadas no pacto de retirada, em relação à Irlanda do Norte —o ponto mais sensível das negociações do divórcio
- 1º.out.2020 - Comissão Europeia inicia processo legal contra o governo britânico. A Lei do Mercado Interno é rejeitada várias vezes pela Câmara dos Lordes, o que obriga o governo a retirar disposições criticadas pela UE. A lei entra em vigor em 17 de dezembro
- 31.dez.2020 - termina o período de transição e o Reino Unido deixa o mercado único da UE e a união aduaneira
- janeiro de 2021 - a necessidade de controlar produtos que chegam da Grã-Bretanha à Irlanda do Norte provoca atrasos no porto de Dover e desabastecimento de lojas
- fevereiro de 2021 - UE concorda com pausa de três meses nas inspeções, para garantir o abastecimento
- março de 2021 - Reino Unido decide prorrogar unilateralmente a carência até outubro e amplia a entrada livre de produtos na Irlanda do Norte. UE lançou uma ação legal, que pode terminar com o Tribunal de Justiça Europeu impondo multas ao Reino Unido
- 1º.jul.2021 - controles sobre carne resfriada, incluindo as linguiças, deveriam ser retomados, e os produtos britânicos ficam proibidos de entrar na Irlanda do Norte se não cumprirem padrões da UE
NÚMEROS DO BREXIT
US$ 905 bi
(quase R$ 4 tri, pelo câmbio atual) foram movimentados no comércio entre o Reino Unido e a UE em 2019
13%
das exportações da UE são para o Reino Unido
cerca de 50%
das exportações do Reino Unido são para a UE
230 milhões
de toneladas de carga passam todo ano entre a UE e o Reino Unido
7 bilhões de libras
(quase R$ 50 bi) é o custo anual da nova burocracia pós-brexit, apenas para os britânicos
2 bilhões de libras
(quase R$ 14 bi) foi a queda nas exportações britânicas de alimentos e bebidas no primeiro trimestre de 2021, em relação ao mesmo período de 2020
70,8%
foi o recuo nas exportações de alimentos e bebidas para a Irlanda; para a Espanha a queda foi de 63%, para a Itália, 61%, e para a Alemanha, 55%
90%
foi a queda na venda de laticínios britânicos para a UE; queijos recuaram 66%
32%
menos garrafas de uísque britânico cruzaram as fronteiras em direção à UE
210 milhões
de passageiros passavam anualmente entre o Reino Unido e a UE antes do brexit
938.568
alunos, professores e aprendizes participaram em 2019 Só em 2019 (dados mais recentes) do programa de intercâmbio Erasmus, do qual o Reino Unido deixou de fazer parte. Por ano, deve ser afetados 22 mil pessoas que saíam do Reino Unido e mais de 35 mil que vinham para suas universidades
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