Descrição de chapéu The New York Times

História sobre vazamento de antraz na União Soviética remete a busca por origens da Covid-19

Soviéticos encobriram verdade sobre caso, e cientistas dos EUA confirmaram versão

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Ekaterimburgo (Rússia) | The New York Times

Pacientes começaram a comparecer a hospitais com pneumonias inexplicáveis. Dezenas deles morreram em questão de dias. A polícia secreta confiscou as fichas médicas e instruiu os médicos a guardarem silêncio. Espiões dos EUA captaram indícios de algo que teria vazado de um laboratório, mas as autoridades locais propuseram uma explicação mais mundana: carne contaminada.

Levou mais de uma década para a verdade vir à tona.

Ao menos 66 pessoas morreram em abril e maio de 1979 quando bactérias de antraz transmitidas pelo ar emergiram de um laboratório militar na União Soviética. Mas cientistas americanos manifestaram confiança na alegação dos soviéticos de que o patógeno teria passado de animais para humanos. Foi apenas após uma investigação realizada na década de 1990 que um dos especialistas confirmou as suspeitas anteriores: o acidente na cidade russa hoje chamada Ekaterimburgo havia sido fruto de um vazamento de laboratório, um dos mais mortíferos já documentados.

Cemitério para vítimas do antraz em Ekaterimburgo, na Rússia
Cemitério para vítimas do antraz em Ekaterimburgo, na Rússia - Sergey Ponomarev - 11.jun.21/The New York Times

Hoje, os túmulos de algumas das vítimas estão abandonados, e seus nomes estampados em placas metálicas nos fundos de um cemitério na periferia da cidade, onde foram sepultados em caixões com um desinfetante agrícola. Mas a história do acidente que lhes levou a vida e da operação de acobertamento que o ocultou ganhou relevância renovada no momento em que cientistas procuram as origens da Covid.

Ela mostra como um governo autoritário é capaz de moldar a narrativa sobre um surto de doença e como podem ser necessários anos —ou, quem sabe, até uma mudança de regime— para a verdade ser encontrada. “Rumores malucos se alastram em torno de cada epidemia”, escreveu o biólogo americano premiado com o Nobel Joshua Lederberg, em memorando após uma viagem de investigação feita a Moscou em 1986. “É muito provável que a explicação soviética atual seja verídica.”

Muitos cientistas consideram que o vírus que causou a pandemia de Covid-19 evoluiu em animais e em determinado momento realizou o salto para humanos. Mas pesquisadores também estão pedindo que seja investigada mais a fundo a possibilidade de um acidente no Instituto Wuhan de Virologia.

Existe um receio generalizado de que o governo chinês (que rejeita a possibilidade de um vazamento de vírus do laboratório, como fez o governo soviético décadas atrás) não esteja dando aos investigadores internacionais o acesso e os dados que poderiam lançar luz sobre as origens da pandemia.

“Todos temos um interesse comum em descobrir se a pandemia é fruto de um acidente de laboratório”, disse o biólogo de Harvard Matthew Meselson, entrevistado neste mês em Cambridge. “Talvez tenha sido um tipo de acidente contra o qual as nossas diretrizes atuais não oferecem proteção adequada.”

Especialista em guerra biológica, Meselson mudou-se, em 1980, para o quarto de hóspedes da casa de um amigo que trabalhava para a CIA, para poder estudar informações secretas sugerindo que o surto de antraz na União Soviética teria sido vinculado a uma instalação militar nas proximidades.

Seis anos mais tarde, escreveu que a explicação dada pelos soviéticos sobre a origem natural do surto era “plausível”. Para ele, as evidências oferecidas condiziam com a teoria de que as pessoas teriam sido atingidas por antraz intestinal originário de farinha de ossos contaminada usada como ração animal.

Então, em 1992, depois do colapso da União Soviética, o presidente russo Boris Ieltsin admitiu que “nosso desenvolvimento militar foi a causa” do surto de antraz.

Meselson e sua esposa, a antropóloga médica Jeanne Guillemin, foram a Ekaterimburgo com outros especialistas americanos para fazer um estudo detalhado.

Documentaram como, em 2 de abril de 1979, um vento nordeste deve ter espalhado alguns esporos de antraz, possivelmente apenas alguns miligramas deles, lançados acidentalmente da fábrica em uma zona estreita que se estendia por pelo menos 48 quilômetros na direção do vento.

Explicando como os soviéticos haviam conseguido desmentir as suspeitas sobre um vazamento de laboratório, Meselson disse: “Você pode arquitetar uma história completamente maluca e torná-la plausível pela maneira como a projeta”.

Em Sverdlovsk, o nome dado a Ekaterimburgo nos tempos soviéticos, essas suspeitas surgiram assim que pessoas começaram a adoecer misteriosamente, conforme revelam entrevistas feitas neste mês com residentes que se recordam daquela época.

Raisa Smirnova, que tinha 32 anos na época e era operária de uma fábrica de cerâmica nas redondezas, disse que tinha amigos que trabalhavam no laboratório misterioso e usavam seus privilégios para ajudá-la a obter laranjas e carne enlatada, produtos normalmente difíceis de conseguir.

Ela ouviu dizer também que algum tipo de trabalho secreto com germes era realizado no laboratório, ao qual boatos locais atribuíam surtos ocasionais de doenças. “Por que suas mãos estão azuis?”, Smirnova se recorda de um colega de trabalho ter lhe perguntado um dia em abril de 1979 quando ela foi trabalhar, aparentemente mostrando sintomas de baixo nível de oxigênio no sangue.

Ela foi levada ao hospital às pressas com febre alta e passou uma semana internada, inconsciente. Até maio, 18 de seus colegas de trabalho haviam morrido. Antes de ser autorizada a voltar para casa, agentes da KGB levaram um documento para que ela assinasse, proibindo-a de falar sobre os acontecimentos por um prazo de 25 anos.

No serviço epidemiológico de Sverdlovsk, o pesquisador sanitarista Viktor Romanenko participou do acobertamento em posição subalterna. Ele contou que soube imediatamente que o surto de doença que atingiu a cidade não poderia ter origem em antraz intestinal, transmitida por alimentos, como alegaram as autoridades sanitárias seniores. O padrão e o momento da distribuição dos casos revelavam que a fonte fora transmitida pelo ar e que foi uma ocorrência única.

“Todos nós percebemos que isso [a explicação oferecida] era baboseira total”, disse Romanenko, que acabaria se tornando o chefe regional sênior de saúde pública nos tempos pós-soviéticos.

Num Estado comunista, porém, ele não teve outra escolha senão participar do embuste. Ele e seus colegas passaram meses apreendendo e testando carne. Agentes da KGB invadiram seu gabinete e levaram embora fichas médicas. A União Soviética havia firmado um tratado proibindo armas biológicas, e os interesses nacionais estavam em jogo. “Ficou entendido que precisávamos nos afastar ao máximo da teoria das armas biológicas”, recordou Romanenko. “Tratava-se de defender a honra do país.”

A preocupação chegou até o Evening Sverdlovsk, um jornal local. Um correspondente do New York Times telefonou à Redação quando o surto estava em andamento, recorda um jornalista que trabalhou lá na época, Alexander Pashkov. O editor-chefe instruiu repórteres a não atenderem telefonemas internacionais ou interurbanos, para evitar a possibilidade de alguém deixar escapar uma mensagem indevida se o correspondente voltasse a ligar. “Quem consegue guardar um segredo sai por cima”, disse Pashkov.

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Quando a União Soviética desabou, o mesmo se deu com sua capacidade de guardar segredos. Para um documentário feito em 1992, Pashkov localizou um oficial aposentado da contra-inteligência então residente na Ucrânia –que hoje é um país distinto— que trabalhara em Sverdlovsk na época. O oficial disse que telefonemas interceptados do laboratório militar revelaram que um técnico se esquecera de recolocar um filtro de segurança.

Pouco depois, Ieltsin –que, como líder comunista principal na região em 1979, havia participado ele próprio da operação de acobertamento— admitiu que a culpa foi dos militares. “Você precisa entender uma coisa muito simples”, disse Pashkov. “Por que tudo isso chegou ao conhecimento público? Por causa da queda da URSS.”

Meselson disse que determinar a origem de epidemias ganha importância mais crucial quando há questões geopolíticas envolvidas. Se ele e seus colegas não tivessem comprovado a causa do surto na época, disse ele, a questão ainda poderia ser um fator de irritação na relação entre a Rússia e o Ocidente.

A mesma coisa vale para a investigação sobre a origem da Covid-19, disse Meselson. Enquanto a fonte da pandemia continuar a ser motivo de suspeitas, a questão vai continuar a criar tensões com a China, mais do que se a verdade viesse à tona. “Há uma diferença enorme entre pessoas que ainda estão tentando comprovar uma questão, combatendo oposição emocional, e pessoas que podem olhar em retrospectiva e dizer ‘sim, eu tinha razão’”, afirmou Meselson. “Uma delas alimenta guerras. A outra é história. Precisamos encontrar respostas a essas perguntas. Precisamos de história, não desta emoção toda.”

Diferentemente da Covid-19, o antraz não é transmitido facilmente de humano para humano, razão pela qual o vazamento do laboratório de Sverdlovsk não desencadeou uma epidemia maior. Mas nem sequer o caso de Sverdlovsk foi plenamente elucidado até hoje.

Ainda não está claro se a atividade secreta realizada na fábrica era o desenvolvimento de armas biológicas ilegais –algo que é sabido que a União Soviética fez— ou se era uma pesquisa de vacinas.

Tradução de Clara Allain 

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