Descrição de chapéu América Latina

Maior parte dos ancestrais dos brasileiros não tem conexão histórica com floresta tropical

Fala de presidente argentino ignora significativa contribuição de imigrantes europeus para formação populacional do Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Carlos (SP)

Ao apontar a suposta origem dos brasileiros “na selva”, o presidente argentino, Alberto Fernández, demonstrou múltiplos níveis de ignorância sobre a história das populações que formaram o Brasil.

O fato é que a maior parte dos ancestrais dos brasileiros de hoje não tem conexão histórica com a floresta tropical (imaginando que seja isso o que ele tenha querido dizer com “selva”). E os que têm essa origem na verdade “civilizaram” a mata de maneiras muito mais sofisticadas do que Fernández parece ser capaz de conceber.

O presidente da Argentina, Alberto Fernandez, à dir., conversa com o premiê da Espanha, Pedro Sánchez, na Casa Rosada, em Buenos Aires
O presidente da Argentina, Alberto Fernandez, à dir., conversa com o premiê da Espanha, Pedro Sánchez, na Casa Rosada, em Buenos Aires - Juan Mabromata - 9.jun.21/AFP

Começando pelo que talvez seja óbvio, a contribuição de imigrantes europeus para a formação populacional do país foi muito significativa, ainda que não majoritária. Calcula-se que, entre 1500 e o século 20, algo entre 6 milhões e 7 milhões de nativos da Europa tenham se estabelecido no território brasileiro.

Em termos absolutos, o número é comparável aos cerca de 5 milhões de africanos escravizados que os navios europeus trouxeram para cá do século 16 até meados do século 19. É mais difícil ter uma ideia exata do total da população indígena no momento do primeiro contato com os portugueses, mas as estimativas mais recentes apontam para números entre 5 milhões e 10 milhões de habitantes nativos.

Por fim, a “conta” populacional brasileira inclui ainda contribuições menores, mas também significativas, de grupos como os imigrantes japoneses (cerca de 250 mil) e sírio-libaneses (cerca de 150 mil).

Lá Fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

Apesar dos números mais ou menos semelhantes, não se deve imaginar que a miscigenação entre indígenas, europeus e africanos aconteceu sob bases iguais. Os membros de ambas as etnias não europeias sofreram mortalidade muito mais alta devido à brutalidade do sistema escravista a que foram submetidas e, particularmente no caso indígena, por conta das guerras de conquista e das doenças infecciosas do Velho Mundo, contra as quais não tinham defesas naturais.

O resultado foi uma mistura étnica assimétrica, na qual homens de origem europeia se uniram (com frequência, de maneira forçada) a mulheres africanas e indígenas —o inverso acontecia com muito menos probabilidade. Esse processo deixou marcas no DNA dos brasileiros de 2021.

Quando se rastreia a linhagem materna dos habitantes do país hoje, a contribuição de cada população é similar, enquanto, do lado paterno, o impacto europeu é desproporcionalmente maior. Entre 75% e 90% dos homens brasileiros de hoje carregam um cromossomo Y —a marca genética da masculinidade— oriundo da Europa.

A importância da contribuição populacional europeia, porém, está longe de ser o único argumento contra a origem “na selva”. Do lado africano, é importante ressaltar que os principais grupos de escravizados trazidos para o Brasil, como os angolanos, congoleses e iorubás, vinham de sociedades que dominavam formas sofisticadas de agricultura, criação de animais e metalurgia (incluindo o uso rotineiro do ferro), com vida urbana, reinos e impérios.

Uma das principais sublevações de escravizados no Brasil imperial, a chamada revolta dos malês, realizada em Salvador em 1835, foi liderada por africanos de fé muçulmana e alfabetizados em árabe.

Quanto aos indígenas, as últimas décadas de pesquisa arqueológica têm demonstrado que diversas populações nativas, em especial na Amazônia, tinham populações densas, redes de comércio e construções monumentais —muralhas, fossos, grandes estradas e estruturas funerárias— que nada têm a ver com a ideia de grupos “selvagens”.

A própria estrutura de espécies vegetais da mata parece ter sido influenciada pelos primeiros brasileiros com um manejo cuidadoso ao longo dos milênios, no qual a floresta foi se tornando “antropizada”, abrigando cada vez mais espécies úteis para os seres humanos.

A porção sudoeste da região amazônica, além disso, é considerada um dos grandes centros de origens agrícolas da pré-história, onde foram domesticadas espécies hoje economicamente importantes no mundo todo, como o amendoim, o cacau e a mandioca. ​

Erramos: o texto foi alterado

A revolta dos malês, em 1835, aconteceu durante o período do Brasil imperial, e não colonial. O texto foi corrigido.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.