Descrição de chapéu União Europeia

Quando nos neutralizar, Orbán pode mirar as mulheres, diz casal gay na Hungria

Publicitário e educador físico contam como o governo conservador afeta suas vidas no país europeu e dizem que ataque extrapola os LGBTs e põe em risco direitos humanos básicos

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Bruxelas

O educador físico Krisztián Tornyosi, 33, é gay assumido e mora com seu namorado na Hungria, que está na mira da União Europeia por ataques aos direitos LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais e outros).

Krisz nasceu e cresceu no país, onde tem família e carreira. Mas seu parceiro, o publicitário colombiano Germán Henao, 32, mudou-se para a Hungria por escolha própria.

E fez isso em 2012, quando o país já era governado pelo populista Viktor Orbán, que neste mês fez passar uma lei proibindo qualquer menção à homossexualidade para menores de 18 anos. Auge de uma onda anti-LGBT que já dura três anos, a investida constitucional está sendo questionada no bloco europeu.

“O que é preciso ficar muito claro é que não são os húngaros que são homofóbicos. O governo é que é”, diz o publicitário, que chegou para uma experiência de um ano pela plataforma Aiesec de intercâmbio profissional, como diretor de marketing, e gostou tanto que ficou.

Em seu primeiro ano na Hungria, o país foi até sede dos Gay Games, um evento europeu do qual participavam todas as nações, conta Germán.

Ele se sentia tão à vontade que chegou a trabalhar como voluntário num projeto para promover o país como destino de turismo gay. Krisz concorda: “A questão LGBT simplesmente não era um assunto para os húngaros. Ninguém se importava com a vida pessoal dos outros”.

O que explica, então, a mudança? Para Germán, é “a procura constante por inimigos” de Viktor Orbán e seu partido nacionalista, o Fidesz. “Primeiro foi a União Europeia, depois os imigrantes, os refugiados, George Soros, e então nós viramos os novos inimigos, e ele começou a intensificar os ataques”, diz o publicitário, que hoje atua na área de criação de uma agência multinacional.

Krisz, que nasceu em Budapeste mas viveu dez anos numa cidade a 150 km a sudeste da capital —onde ainda moram seus pais—, diz que a força da campanha difamatória de Orbán é ainda mais sentida no interior, onde só há acesso à mídia controlada pelo Fidesz e todos dependem fortemente do governo para empregos e orçamento.

“A tática é escolher um inimigo diferente a cada dois anos e inundar o interior com desinformação, e então se apresentar como aquele capaz de salvá-los”, opina Germán. Na prática, isso já afeta a vida do casal, que trocou mensagens pelo Instagram por vários anos até se encontrar, em 2019, e “ficar inseparável" desde então.

Quando visitam a família de Krisz, contam, evitam beijos, mãos dadas e até ficarem muito próximos um do outro em público, no município de 20 mil habitantes. “Não é por causa dos meus pais, que nos adoram. Mas minha mãe é secretária numa escola do governo. Ela até gostaria de poder se manifestar e criticar as políticas do governo, mas, se falar, perde o emprego”, diz o educador físico.

Mesmo em Budapeste, cidade de quase 2 milhões de habitantes onde a população é mais jovem e a abertura de empresas estrangeiras criou uma comunidade cosmopolita, a escalada agressiva de Orbán já começa a ter impacto.

“Sou muito aberto sobre ser gay e jamais tive problema, nunca fui discriminado em Budapeste. Mas, desde que a retórica anti-LGBT do governo começou a crescer, o medo começou a crescer entre nós, e ao mesmo tempo a raiva começou a surgir entre algumas pessoas”, diz o publicitário colombiano.

Alguns amigos do casal chegaram a deixar a Hungria, por considerarem que a direção imprimida ao país pelo Fidesz os afastava cada vez mais de um bom lugar para viver. Não faltam bons empregos, diz Germán, mas cresceu o risco de ter os filhos atacados na escola porque seus pais são gays.

“Porque a mensagem no país agora é que LGBTs são pedófilos. E, se você quiser ir ver um jogo de futebol do seu filho na escola secundária, os outros pais vão te olhar como um inimigo.”

A situação tende a piorar, justamente porque a lei proíbe a educação sobre sexualidade nas escolas. “O resultado será mais ignorância, mais incompreensão e mais violência”, diz Germán.

E mais sofrimento para os jovens. “Se a lei proíbe qualquer menção aos LGBTs, adolescentes não hétero vão se sentir totalmente deslocados, pois jamais serão mencionados. Há homem que gosta de mulher ou de homem, mulher que gosta de mulher, e isso é normal, não há problema. Mas agora eles não vão ouvir nada disso nem poderão pedir que alguém os abrace e lhes diga que não há nada de errado com eles”, observa Krisz.

Era justamente para amparar esses adolescentes que Gérman se preparava para ajudar a implantar a seção húngara da ONG global It Gets Better (fica melhor), em que pessoas da comunidade LGBT contam como superaram as dificuldades e incentivam seus pares a lutar. Com a nova legislação, falar disso com os jovens ficou vetado.

Para o casal, o que o governo não percebeu foi que, ao tentar controlar os LGBTs, prejudicou a vida de todos. Na questão das adoções, por exemplo, ao restringi-la a casais católicos heterossexuais, alijou solteiros, seja qual for sua orientação sexual, e pessoas de outras religiões.

Krisz vê também comprometido seu trabalho de preparador físico, no qual muitas vezes os alunos requerem ajuda para se fortalecerem também psicologicamente ou precisam de alguém que apenas os escute. Agora, se estiver treinando adolescentes, precisará se policiar sobre os temas.

“Além disso, se pararmos de educar as crianças sobre sexo em geral, não apenas sobre homossexualidade, que tipo de crianças vamos criar?”, pergunta Krisz. Eles observam que não são só pais gays que querem seus filhos educados em um ambiente de informação, respeito e diversidade.

O que está em jogo agora afeta todos os húngaros, afirmam Germán e Krisz: “A mira está nos LGBTs, mas, quando eles nos neutralizarem, vão virar suas baterias para outros grupos. Não é uma questão gay, ‘os gays que se virem’.Trata-se de direitos humanos básicos. Se o Fidesz acredita que a função das mulheres é produzir crianças, por exemplo, pode proibir planejamento familiar ou anticoncepcionais. Esse grupo restrito cada vez mais vai controlar o que pode ser uma família”.

O casal já enxerga uma reação mais ampla, ao menos em Budapeste. Um protesto contra a mais nova lei de Orbán reuniu moradores de grupos variados, “avós, crianças”, e cresceram manifestações de apoio nas redes sociais e também nas ruas. Muitas companhias declararam em público seu apoio aos LGBTs, “não apenas multinacionais, mas empresas húngaras também”, ressalta Germán.

Mudanças reais, porém, só se esperam para o médio prazo. “Em 15 ou 20 anos, chegará ao poder essa nova geração que não viveu fechada em suas comunidades, com memórias da Segunda Guerra ou sob forte influência russa. Em 15 ou 20 anos, essas pessoas serão os líderes na política e na economia, e a Hungria poderá dar uma guinada para melhor”, espera Germán.

Com leis que visam controlar diretamente as novas gerações e forçá-las a pensar como as velhas, será preciso redobrar a luta, preveem.

ENTENDA O CASO

Quem é o primeiro-ministro da Hungria?

Viktor Orbán, 58, estudou inglês, direito e ciência política. Virou líder do partido Fidesz, em 1993, e o fez migrar de sua linha liberal para uma plataforma conservadora, nacionalista e populista.

Orbán foi primeiro-ministro pela primeira vez de 1998 a 2002. Voltou ao governo em 2010 e, com o controle do Parlamento, mudou leis eleitorais que facilitaram a seu partido obter mais assentos com menor número de votos. Foi reeleito em 2014 e 2018.

A plataforma política de Orbán sempre foi anti-LGBT?

Não. O político conservador segue a estratégia populista de criar inimigos contra os quais se apresenta como um líder de pulso firme capaz de defender a população.

Desde que voltou ao poder em 2010, já foram escolhidos como alvos principais os comunistas, os imigrantes, a União Europeia, os capitalistas judeus (especialmente o húngaro-americano George Soros) e, nos últimos três anos, os LGBT.

Segundo a historiadora Eva Balogh, Orbán não é pessoalmente homofóbico e essa não é uma questão ideológica do partido. “O alto escalão do Fidesz sabe há 30 anos que József Szájer, um dos amigos íntimos e aliados políticos de Orbán, é gay, mas sua orientação sexual não era problema em sua comunidade política”, escreve ela em seu blog Hungarian Spectrum.

Que direitos já foram retirados dos LGBT?

Alterações na Constituição lideradas por Orbán limitaram a definição de família, por exemplo, à formada por um homem e uma mulher, e determinaram que o gênero de uma pessoa deve ser o biológico.

Na prática isso impede que transexuais alterem seus nomes e, além de abolir direitos civis de casais do mesmo sexo, restringe fortemente a possibilidade de adoção por quem não estiver em casamento católico.

Como a lei antipedofilia afeta os direitos LGBT?

O Fidesz, partido controlado por Orbán, inseriu na lei uma seção que diz: “Para os fins desta lei e para garantir os direitos da criança, é proibido disponibilizar a menores de 18 anos pornografia ou representação da sexualidade para seus próprios fins, ou que implique qualquer desvio da identidade do sexo com o qual a pessoa nasceu, ou mudança de gênero e homossexualidade”.

Ou seja, cria uma identificação entre homossexualidade e pedofilia e impede a educação sexual e até mesmo a menção à homossexualidade nas escolas.

O que diz Orbán sobre essa lei?

Orbán e membros de seu governo têm dito que a intenção da lei é garantir que “a educação sexual dos filhos pertence exclusivamente aos pais”, embora o texto aprovado não faça nenhuma menção à palavra pai.

Por que Orbán agora ataca os LGBT?

Oposicionistas o acusam de tentar tirar a atenção da onda de críticas que ganhou as ruas após a tentativa do governo de construir em Budapeste um campus da Universidade Fudan, na China.

Para alguns analistas, o ataque aos LGBT é uma estratégia política oportunista, que encontra eco no eleitorado mais conservador do interior do país. A historiadora Eva Balogh vê “um cálculo político frio, ditado pela ameaça da oposição unida, que pode derrubar o partido de Orbán em abril de 2022”.

Qual a reação da União Europeia?

Líderes de 17 países assinaram uma carta pedindo que a Comissão Europeia (Poder Executivo da UE) reagisse contra a lei, que, segundo eles, “representa uma forma flagrante de discriminação com base na orientação sexual, identidade e expressão de gênero e portanto, merece ser condenada”.

O comissário responsável por Justiça, Didier Reynders, e o comissário para mercado interno, Thierry Breton, deram o primeiro passo para uma ação legal contra a Hungria: enviaram uma carta à ministra da Justiça húngara, Judit Varga, pedindo esclarecimentos. Ela tem prazo até o final deste mês.

A Hungria pode ser obrigada a rever a lei?

Não diretamente, mas há três caminhos para tentar pressioná-la.

1) O primeiro é o da Justiça. Após a resposta da ministra húngara ao questionamento feito nesta semana, a Comissão pode iniciar um processo por infração, obrigando a Hungria a alterar a lei.

Caso a Hungria se recuse, o caso irá para o Tribunal de Justiça Europeu. Se a decisão final for a de que a lei húngara fere o direito europeu, o governo da Hungria pode ser punido, mas esse processo pode durar anos.

2) Outro caminho de pressão é um procedimento disciplinar conhecido como artigo 7º, que a Comissão Europeia aplica quando considera que um de seus membros pode estar violando valores essenciais da UE. No limite, os procedimentos do artigo 7º podem levar à suspensão de direito de voto de um país no Conselho Europeu, órgão que reúne os governos dos 27 membros.

Para isso, no entanto, é necessária aprovação unânime dos outros 26 membros, algo improvável porque a Polônia, também sob investigação, apoia o governo de Orbán.

3) Um novo instrumento, fruto de um acordo não muito enfático firmado no ano passado, é tentar vincular o repasse dos recursos bilionários de reconstrução pós-pandemia ao respeito aos valores da UE e ao Estado de Direito.

Como o texto não estabelece firmemente essa barreira, aplicá-la dependeria de força política da Comissão e diplomacia. Não é pouco o que está em jogo: a Hungria pleiteia receber 50 bilhões de euros (R$ 296 bi), certa de um terço de seu PIB anual.

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