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Revolta contra confinamento gera caçada policial na Bélgica

Com armas e munição retiradas de quartel, atirador de extrema direita ameaça virologista famoso e é procurado por centenas de policiais

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Bruxelas

A guerra ideológica entre céticos e adeptos da ciência nesta pandemia ganhou contornos muito concretos na Bélgica: uma caçada policial que já dura 21 dias e mobiliza cerca de 350 policiais e soldados, cães de busca, helicópteros e ao menos 50 caminhões militares.

Eles vasculham o nordeste de Flandres (região de fala flamenga, na metade norte do país) à procura do instrutor militar de tiro Jürgen Conings, 46, que fugiu com “um arsenal e munição suficientes para uma pequena guerra", após ameaçar de morte um dos principais —e o mais pop— virologistas do país, Marc van Ranst.

Especialista em “camuflagem e pontaria”, o ex-soldado é descrito pelo governo como “difícil de encontrar e incrivelmente perigoso”, e um mandado internacional de busca foi lançado pela Interpol. Unidades especiais de Luxemburgo, da Alemanha e da Holanda auxiliam nas buscas e patrulham as fronteiras que poderiam ser cruzadas por Conings.

No dia em que desapareceu, o ex-soldado retirou do depósito do quartel um lançador de foguetes, uma submetralhadora P90 —arma leve semiautomática que pode perfurar coletes à prova de balas, segundo o Exército belga— e uma pistola 5.7 mm e deixou um bilhete: “Não consigo conviver com as mentiras de quem decide como devemos viver. A chamada elite política e agora também os virologistas decidem como você e eu devemos viver. Eles semeiam ódio e frustração, piores do que já eram”.

Depois dirigiu até a rua em que Van Ranst mora e montou campana por três horas, esperando que ele chegasse ao trabalho. Por sorte, o chefe do departamento de virologia clínica e epidemiológica da Universidade Católica de Leuven havia voltado excepcionalmente mais cedo e já estava em casa com a mulher e o filho de 12 anos.

Desde então, Van Ranst e a família estão trancados em um esconderijo vigiado por agentes de segurança. A ameaça é levada tão a sério que o cientista não pode se aproximar das janelas e nem mesmo dar entrevistas por videoconferência, para que não haja imagens que permitam sua localização.

Homem de suéter azul abraça garoto loiro que tem uma bola de futebol sob o braço esquerdo
O virologista Mark van Ranst e seu filho Milo, 12; a família está escondida desde que o cientista foi ameaçado de morte, em 17 de maio - Arquivo pessoal

O cientista, que completa 56 anos no próximo dia 20, virou um alvo visível na Bélgica por suas aparições frequentes em programas de TV e de rádio e em entrevistas coletivas nas quais foram anunciadas restrições para conter o coronavírus. Sátiras de suas declarações foram vistas mais de 1,5 milhão de vezes no YouTube, e ele chegou a apresentar atrações pop de rádio e de TV.

Além da visibilidade, Van Ranst adotou desde o começo da crise sanitária uma atitude de "combate às duas doenças da Bélgica: o coronavírus e a extrema direita flamenga". A ameaça de Conings é a mais séria e mais recente, mas houve várias outras no ano passado, e o virologista chegou a ser processado por nacionalistas por “causar danos econômicos”.

Dias depois de ter sido colocado sob proteção policial, ele chegou a entrar na toca dos leões: ingressou em um grupo de aplicativo de mensagens chamado “Als 1 man achter Jürgen” (como um só homem por trás de Jürgen, em apoio ao ex-soldado) e provocou seus cerca de mil participantes.

“Pensei em vir ver que criatividade borbulha por aqui. Devo dizer que estou desapontado”, escreveu, acrescentando depois: “Muitos erros ortográficos !!! (...) Sem padrões, mas, novamente, o que poderíamos esperar de um grupo de apoiadores de terroristas?".

Ao VRT News disse que talvez não tenha sido a atitude mais sensata, "mas você nem sempre pensa isso logicamente”. “Estou muito zangado. Estou preso aqui. Para quem está de fora é muito fácil julgar.” Dois dias depois, um segundo militante da extrema direita foi preso em Flandres por ameaças ao virologista.

O atirador fugitivo já fazia parte da lista antiterrorismo da polícia, como “extremista potencialmente violento, com visões extremistas, que tem a intenção de usar a violência, mas ainda não tomou medidas concretas para fazê-lo". Ele era filiado ao partido de ultradireita Vlaams Belang, criticado por criar animosidade contra os virologistas devido às medidas de restrição ao contágio do coronavírus, vistas como violação de suas liberdades.

O Vlaams Belang, por sua vez, disse não ter ligação com as ações de Conings nem responsabilidade por elas, mas endossou seu “estado de espírito”. “Os atos que Conings quer cometer são repreensíveis, mas a sensação de mal-estar que ele descreve é ​​generalizada”, disse o presidente do partido, Tom van Grieken.

Além do perigo individual que o ex-soldado representa, há preocupação com o crescimento da extrema direita dentro das Forças Armadas, algo documentado também em relatórios recentes na Alemanha e no Reino Unido.

Outro problema para o governo belga é a repercussão coletiva: em Flandres, onde 40% da população quer se separar da Bélgica, manifestantes fizeram atos de apoio ao atirador depois que ele começou a ser procurado pela polícia. Um grupo de apoio a Conings atraiu mais de 50 mil membros até ser cancelado na semana passada pelo Facebook. O Vlaams Belang atacou a medida da rede social: “Isso só alimenta a raiva existente”.

As buscas pelo terrorista se concentram agora em um parque nacional onde foi encontrado seu carro e as armas mais pesadas e mais perigosas. A Justiça iniciou processo por "tentativa de assassinato terrorista", e a polícia diz que quer capturá-lo vivo, embora não descarte a possiblidade de que ele esteja morto. Em bilhete à namorada antes de desaparecer, afirmou: "Estou me juntando à resistência. Talvez não sobreviva".

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