Tradutores afegãos que trabalhavam para os EUA temem ser deixados à mercê do Taleban

Enquanto soldados americanos se retiram do país, 18 mil ex-funcionários esperam vistos especiais de migração

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Washington

Agha tinha 22 anos quando decidiu, em 2010, trabalhar para os Estados Unidos. Soldados americanos haviam invadido seu país, o Afeganistão, e precisavam de tradutores para se comunicar com a população local. Agha sabia do risco: a organização terrorista Taleban caçava pessoas como ele, chamando-as de traidores. Mas acreditou na promessa de seu empregador: terminado o serviço, poderia receber um visto especial e migrar para os Estados Unidos.

O que não sabia é que o processo seria, nas suas palavras, uma tortura. Agha —ele revela apenas o apelido, por questões de segurança— deu entrada na papelada em 2014. Foram seis anos de espera até receber o visto em meados de 2020. “Uma promessa feita pelos Estados Unidos significava muito para mim”, diz ele, agora com 33 anos. “Eu vivi, ao mesmo tempo, a mistura do medo de morrer com a esperança de poder sair do Afeganistão. Foi uma das coisas mais traumáticas da minha vida.”

Meninos passam por camionete danificada em Lashkar Gah, no no Afeganistão
Meninos passam por camionete danificada em Lashkar Gah, no no Afeganistão - Jim Huylebroek - 10.mai.21/The New York Times

E Agha foi um dos afortunados. Há 18 mil casos abertos de ex-funcionários afegãos, incluindo tradutores, que esperam o governo americano cumprir a promessa e recompensá-los por arriscar a vida pelo invasor do seu país. Essa crise humanitária chegou a um ponto crítico agora que os Estados Unidos estão retirando seus soldados. Em alguns meses, quando a debandada acabar, essas pessoas estarão à mercê do Taleban.

Essa situação deve deixar uma mancha indelével na já controversa campanha americana no Afeganistão. Os Estados Unidos invadiram o país depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, à caça de Osama Bin Laden. Derrubaram o governo da organização radical Taleban e prometeram levar a paz.

O momento seduziu jovens como Khalil Arab. Nascido em 1986, fazia parte da chamada "geração da guerra", que nunca havia vivido a paz. Viu os invasores soviéticos, a guerra civil, a tomada do Taleban e a chegada dos americanos. “Ficamos esperançosos, achamos que fosse uma boa oportunidade para mudar o país”, diz, aos 35 anos. Ele começou a trabalhar como encanador para a coalizão internacional em 2004. Aprendeu inglês e, um ano depois, conseguiu um emprego como intérprete.

Além de virar um alvo do Taleban, diz Arab, virou um alvo especialmente frágil. “Nós não éramos apenas identificados como inimigos, mas como inimigos vulneráveis, porque éramos civis. Eu nunca segurei uma arma na minha vida”, afirma. Em 2010, ouviu um rumor em seu bairro de que extremistas estavam à sua procura. Decidiu fugir para a Europa e conseguiu um visto para a Polônia. Com as ameaças, soube que não poderia voltar —e se emociona quando conta isso. Pediu o visto para os EUA em 2013. Recebeu só em 2019.

“Foi um período aterrorizante, mesmo estando em segurança na Europa”, diz. “Não me senti apenas abandonado, mas também traído pelas pessoas que eu tinha ajudado. Nós éramos as engrenagens das forças americanas no Afeganistão. Os Estados Unidos precisam salvar os tradutores, e rápido.”

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Para Cress Clippard, um ex-soldado americano que serviu no Afeganistão de 2012 a 2016, o governo parece não entender o quanto tradutores como Agha e Arab se sacrificaram. Clippard é hoje um voluntário na Combined Arms, uma organização que ampara afegãos em Houston, no Texas —basicamente, trata os intérpretes como trata os veteranos americanos.

Clippard conta a dramática história de Mohammed, um afegão que esperou dez anos pelo visto. Ele foi morto em dezembro passado, na frente do filho. Organizações humanitárias se mobilizaram para pressionar os Estados Unidos a salvar ao menos a família do intérprete. Eles acabaram de chegar a Houston, onde foram recebidos por Clippard. “Mohammed se sacrificou porque acreditou na gente. Vamos fazer o máximo para cuidar de sua família, mas o nosso governo falhou com eles.”

A demora, comum a todos esses pedidos de visto especial, é resultado de uma burocracia redundante e ineficiente. “Perde-se muito tempo enviando os casos de um lado para o outro”, diz Sunil Varghese, um dos diretores do IRAP (projeto internacional de assistência a refugiados, na sigla em inglês). Essa organização oferece auxílio legal gratuito para os intérpretes afegãos, ajudando-os a superar os labirintos americanos.

Diversos departamentos do governo americano batem cabeça conferindo documentos. Afegãos penam, também, para conseguir provar que de fato trabalharam para os Estados Unidos. Precisam de cartas de recomendação de supervisores que já morreram ou deixaram o país, dificultando o processo. “O governo leva anos para confirmar que uma pessoa era um empregado... do próprio governo”, diz.

Como um exemplo da tortura burocrática que viveu, Agha conta que precisou mandar mais de cem emails para as autoridades americanas para explicar uma discrepância em seus documentos. Havia uma diferença de um ano entre seu passaporte e seu crachá de tradutor —resultado, diz, de uma cultura local em que crianças nem sempre são registradas imediatamente. “Eu tive que explicar para eles que o Taleban não iria desistir de me matar só por causa de um erro nos meus documentos.”

Além da crise humanitária, o abandono dos tradutores afegãos representa também uma ameaça para a segurança nacional e a política externa americanas. Os Estados Unidos dependem de intérpretes para mediar seu contato com a população dos países que invadem —outro exemplo é o Iraque. “Se quebramos as nossas promessas e colocamos essas pessoas em risco, ninguém vai cooperar conosco. Isso vai prejudicar os nossos objetivos no exterior”, diz Varghese.

A esta altura, não está claro como os Estados Unidos poderiam cumprir a promessa feita aos funcionários afegãos. Os soldados devem sair do país antes do prazo anunciado de 11 de setembro, o que significa que o governo tem poucos meses para processar os vistos de 18 mil pessoas e de suas famílias.

É pouco provável que, nas atuais circunstâncias, a situação termine bem. Além da demora de praxe, a representação diplomática americana em Cabul foi fechada devido à pandemia da Covid-19. Uma solução apresentada por organizações humanitárias é que os Estados Unidos evacuem os afegãos para algum território próximo —como fizeram com 130 mil vietnamitas em 1975— para então processar os vistos sem o risco de vingança do Taleban.

“Não entendo como é que as autoridades ainda não encontram uma solução”, diz o veterano Clippard. “Retirar os afegãos do país deveria ser a prioridade do governo americano.”

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