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China Ásia

Citações histórico-literárias de Xi na festa do PC Chinês passam despercebidas pelos ouvidos ocidentais

Escorando-se nos fantasmas do passado, líder traça cronologia da legitimidade de seu papel no partido

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Calebe Guerra

Doutorando em Literatura Clássica Chinesa pela Universidade de Wuhan

Em seu discurso na cerimônia de celebração dos cem anos do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping deixou o Ocidente confuso. Não apenas pela dificuldade que veículos estrangeiros tiveram para traduzir algumas das colocações, mas também pela grande quantidade de citações histórico-literárias.

No ápice de sua fala, o atual líder do partido disse em tom resoluto e estridente que o povo chinês nunca permitirá que poderes estrangeiros os intimidem, oprimam e escravizem.

Então, acrescentou, subindo o tom: “Todo aquele que se ilude em intimidar a China terá sangue fluindo de sua cabeça quebrada ao se chocar com a Grande Muralha de aço construída com a carne e o sangue de 1,4 bilhão de chineses”. O desconforto gráfico dessas imagens não é fácil de entender. Tudo o que nós temos são pistas históricas que Xi comumente oculta em suas colocações.

O secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping, durante discurso de comemoração dos 100 anos da legenda, em Pequim
O secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping, durante discurso de comemoração dos 100 anos da legenda, em Pequim - Xie Huanchi - 1º.jul.21/Xinhua

“Sangue fluindo de sua cabeça quebrada” é uma figura que remete a um capítulo do grande romance chinês "Jornada ao Oeste", escrito em meados do século 16. No episódio em questão, o personagem Sun Wukong, mais conhecido como Rei Macaco, faz um apelo pela vida de monges budistas a um maldoso líder taoísta que os prendeu e os obrigou a trabalhar escravizados. No pedido, Wukong diz que os monges eram parentes queridos, mas o vilão taoísta aceita liberar somente um deles, decisão que não agrada.

Em um ímpeto heroico, Wukong liberta todos os 500 monges do tirano ao pegar seu bastão mágico dourado e bater nele, daí o “sangue fluindo de sua cabeça quebrada”. A linguagem é forte, mas o contexto é o de libertar da opressão. A imagem que vem depois é ainda mais sanguinária, com pescoço quebrado e suco cerebral jorrando. Digamos que Xi soube dosar a parte da citação que lhe cabia trazer ao discurso.

Mais detalhes passaram despercebidos para um ouvinte ocidental. Como, por exemplo, a alusão feita ao mito da criação segundo os chineses. Xi compara a criação do Partido Comunista Chinês ao feito de “dividir o céu da terra”, ação que o deus Pangu tinha realizado ao gerar uma nova era da criação.

China, Terra do Meio

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Alheia também ao nosso limitado conhecimento de literatura clássica chinesa é a conexão histórica da promessa que sua liderança hoje entrega uma "Xiaokang Shehui" (sociedade moderadamente próspera), um estado social que antecede a comunidade utópica que confucionistas sonharam no século sexto a.C., presente no "Livro Dos Ritos". Buscar na história da China, nos mitos do seu povo e nos clássicos do seus intelectuais antigos a fundação da legenda como o cumprimento de um sonho da civilização chinesa —e o seu ápice— é algo que o líder do Partido Comunista Chinês faz o tempo todo.

Então é crucial enxergar o discurso como ponto de convergência das grandes aspirações milenares do povo chinês: o sonho de manter o território unificado e o desejo de se verem livres de interferência estrangeira sobre o próprio país. A primeira grande unificação do território da China ocorreu no ano de 221 a.C, com o estabelecimento da Dinastia Qin. Qin Shihuang, o Imperador Amarelo, realizou o grande feito, mas tinha ainda outro problema nas mãos: povos estrangeiros invasores.

Foi justamente para lidar com a questão da invasão territorial que ele impulsionou a criação da Grande Muralha, tentando impedir o avanço dos povos que não pertenciam ao Império Unificado e que apresentavam o risco de invasão e guerra. Famoso por suas implacáveis decisões militares, Qin Shihuang é considerado um dos grandes líderes do mundo antigo por ter lidado simultaneamente com esses dois problemas que, em maior ou menor grau, todo imperador chinês teve que enfrentar.

Após sua morte e o fim da Dinastia Qin, a Grande Muralha perdurou por centenas de anos cumprindo com seu dever de barrar estrangeiros nortenhos na soleira da porta do Império do Meio e fincando-se como símbolo da resistência chinesa frente aos povos bárbaros.

Quando Mao Tse-tung empenha-se mais ferozmente em sua ascensão ao poder dentro do Partido Comunista Chinês, ele sabia que sua posição histórica o conectava ao lendário Qin Shihuang.

As duas maiores dores de cabeça que o Imperador Amarelo enfrentou também se sobrepunham no horizonte que separava Mao do poder absoluto: um território fatiado por senhores de guerra chineses e suas facções e a presença de estrangeiros. Naquele contexto, a China fatiava-se e repartia-se em metade colônia de potências imperialistas e metade escrava dos seus próprios senhores feudais.

Mao conseguiu, de fato, igualar-se historicamente ao grande líder antepassado. No final dos anos 1940, ele entregava uma China novamente unificada e (quase) livre de invasão estrangeira. Foi no fim dessa década que ele, junto com outros membros do partido, escolhem "A Marcha dos Voluntários" como hino da República Popular da China, a ser proclamada e estabelecida em 1º de outubro de 1949.

Na época, Mao e outros líderes da cúpula da legenda se uniram na escolha da canção. O motivo seria a convicção de que a China, mesmo unificada, ainda contaria com forte resistência de inimigos imperialistas, que os odiariam na mesma medida do progresso da nação, e de que, por isso, os chineses precisariam viver em eterna vigilância. "A Marcha dos Voluntários" traz em suas primeiras linhas o mesmo símbolo histórico ovacionado ininterruptamente por chineses no decorrer de toda a história:

“Levantem-se, todos os que não aceitam ser escravizados! Usemos a nossa carne e sangue para construir a nossa nova Grande Muralha! O povo chinês chegou ao momento mais perigoso, em que cada um de nós somos obrigados a soltar nosso último brado. Levantem-se! Levantem-se!”

Ciente de que a construção física da Grande Muralha não seria mais suficiente para manter os povos estrangeiros fora do território chinês, Mao e os líderes do partido confiavam que o espírito do grande emblema arquitetônico deveria permanecer vivo. Era ele, afinal, que conectava o país moderno a sua história milenar e legitimava as escolhas políticas que a legenda faria para manter a China livre dos grandes impérios ocidentais. Não mais blocos empilhados uns em cima dos outros, mas o desejo resoluto dos chineses de manter vivo o espírito anti-imperialista.

Desta forma, unificar o território e expulsar os estrangeiros se tornaram os grandes objetivos alcançados por Mao, entronizando-o eternamente no coração da nação chinesa que, não cega aos erros de suas políticas tiranas de limpeza ideológica, ainda o mantém inconfundivelmente na mais alta estima histórica.

Então, chegamos a Xi Jinping. Seu discurso ocorreu no mesmo lugar onde Mao costumava se pôr de pé para ser aclamado. Nos seus ombros, e impresso em sua fala, Xi traz consigo o desejo de legitimar sua liderança frente ao palco histórico da “grande civilização chinesa”.

Em seu discurso, a “Grande Muralha de aço construída com a carne e o sangue de 1,4 bilhão de chineses” simboliza quão longe os chineses estão dispostos a ir para manter estrangeiros alheios a assuntos internos, como o controle em Hong Kong e a anexação de Taiwan.

Escorando-se nos fantasmas do passado, Xi não se levanta solitário frente à multidão de chineses que o assiste ansiosa, mas reivindica para si um local na mesa dos grandes líderes antigos e, assim, perante a nação, traça a cronologia da legitimidade histórica de sua liderança e seu papel dentro do partido.

O passado reconhecendo o presente.

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