Descrição de chapéu The New York Times

'Eles pensaram que eu estivesse morta': viúva do presidente do Haiti relembra o assassinato

Martine Moïse cobra que FBI ajude na investigação e cogita concorrer à Presidência

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Frances Robles
Miami | The New York Times

Com o cotovelo despedaçado por tiros e a boca cheia de sangue, a primeira-dama do Haiti estava caída no chão ao lado da cama, sem conseguir respirar, enquanto os assassinos invadiam o quarto.

"A única coisa que eu vi antes que eles o matassem foram suas botas", disse Martine Moïse sobre o momento em que seu marido, o presidente do Haiti, Jovenel Moïse, foi morto a tiros ao seu lado. "Então eu fechei os olhos e não vi mais nada."

Martine Moise, viúva do presidente do Haiti, Jovenel Moise, durante o funeral dele, em 23 de julho - Tcharly Coutin - 23.jul.2021/Xinhua

Ela escutou enquanto eles reviravam o quarto, buscando metodicamente alguma coisa nos arquivos de seu marido, disse ela. "'Não é isso. Não é isso'", ela lembrou que eles disseram em espanhol, repetidamente. Então, afinal: "'É isso'".

Os assassinos fugiram. Um deles pisou no seu pé. Outro dirigiu uma lanterna para seus olhos, aparentemente para verificar se ela estava viva. "Quando eles foram embora, pensaram que eu estivesse morta", disse ela.

Em sua primeira entrevista desde o assassinato do presidente, em 7 de julho, Martine Moïse, 47, descreveu a dor terrível de ver seu marido, com quem ela viveu por 25 anos, ser morto na sua frente.

Ela não quis relembrar o tiroteio mortal, as paredes e janelas tremendo, a certeza aterrorizante de que seus filhos seriam mortos, o horror de ver o cadáver de seu marido, ou como ela se esforçou para se levantar depois que os assassinos partiram. "Todo aquele sangue", disse ela em voz baixa.

Mas ela precisava falar, segundo disse, porque não acreditava que a investigação da morte de seu marido tinha respondido à pergunta principal que atormenta a ela e a muitos haitianos: quem ordenou e pagou pelo assassinato dele?

A polícia haitiana deteve um amplo leque de pessoas ligadas ao assassinato, incluindo 18 colombianos e vários haitianos e haitiano-americanos, e continua procurando outros.

Os suspeitos incluem militares colombianos aposentados, um ex-juiz, um vendedor de equipamento de segurança, um corretor de seguros da Flórida e dois comandantes da equipe de segurança do presidente.

Segundo a polícia haitiana, a trama elaborada gira em torno de um médico e pastor, Christian Emmanuel Sanon, 63, que teria conspirado para contratar os mercenários colombianos para matar o presidente e tomar o poder político.

Mas os críticos da explicação do governo dizem que nenhuma das pessoas citadas na investigação tinha meios para financiar o complô por conta própria. E Martine Moïse, assim como muitos haitianos, acredita que deve ter havido um cérebro por trás delas, dando as ordens e fornecendo o dinheiro.

Ela quer saber o que aconteceu com os 30 a 50 homens que ficavam geralmente destacados em sua casa quando o marido estava lá. Nenhum dos guardas foi morto ou sequer ferido, disse Moïse. "Não entendo como ninguém foi ferido", afirmou ela.

Na época de sua morte, Jovenel Moïse, 53, estava no meio de uma crise política. Manifestantes o acusavam de ficar no cargo além de seu mandato, de controlar bandos criminosos e de governar por decretos enquanto as instituições do país eram esvaziadas.

Moïse também estava em uma batalha com alguns dos oligarcas mais ricos do país, incluindo a família que controla a rede elétrica nacional.

Enquanto muitas pessoas descreveram o presidente como um líder autocrático, Martine Moïse disse que seus conterrâneos devem lembrar dele como um homem que enfrentava os ricos e poderosos.

E agora ela quer saber se um deles o mandou matar. "Só os oligarcas e o sistema poderiam matá-lo", disse ela.

Vestida de preto, com o braço —hoje paralisado e talvez incapacitado para sempre, segundo ela— envolto em ataduras e numa tipoia, Moïse deu uma entrevista no sul da Flórida ao The New York Times, sob a condição de que não revelasse sua localização.

Ao lado de seus filhos, guardas de segurança, diplomatas haitianos e outros assessores, ela falou quase sempre num sussurro.

Ela e o marido estavam dormindo quando os sons de tiros os fizeram levantar assustados, lembrou. Moïse disse que correu para acordar os dois filhos, ambos na casa dos 20 anos, e lhes pediu para se esconderem num banheiro, o único cômodo sem janelas. Eles se abrigaram lá com seu cachorro. Seu marido agarrou o telefone e pediu ajuda.

"Eu perguntei: 'Querido, para quem você telefonou?'", disse ela. "Ele disse: 'encontrei Dimitri Hérard; encontrei Jean Laguel Civil'", lembrou ela, citando os nomes de duas autoridades encarregadas da segurança presidencial. "E eles me disseram que estavam vindo."

Mas os assassinos entraram na casa rapidamente, parecendo não encontrar obstáculos, disse ela. Jovenel Moïse disse a sua mulher para se deitar no chão, para não se ferir.

"'Eu acho que aí você estará segura'", ela lembrou que ele lhe disse. Uma rajada de tiros entrou pelo quarto, disse ela, e a atingiu primeiro. Ferida na mão e no cotovelo, Martine Moïse ficou deitada no chão imóvel, convencida de que ela e toda a sua família estavam mortos.

Nenhum dos assassinos falava crioulo ou francês, disse. Os homens só falavam espanhol e se comunicavam com alguém ao telefone enquanto vasculhavam o quarto. Parecem ter encontrado o que buscavam numa prateleira onde seu marido guardava pastas.

"Eles procuravam alguma coisa no quarto, e a encontraram", disse Moïse. Ela disse que não sabe o que era.

"Nesse momento, senti que estava sufocando porque havia sangue em minha boca e eu não conseguia respirar", disse ela. "Na minha mente, todo mundo estava morto, porque se o presidente podia morrer todos os outros também poderiam ter morrido."

Os homens que seu marido tinha chamado para ajudar, disse ela —as autoridades encarregadas de sua segurança—, hoje estão sob custódia no Haiti.

E apesar de ter expressado satisfação porque vários acusados de conspiração estão detidos, ela não está nada contente.

Moïse quer que agências de segurança internacionais como o FBI, que vasculhou casas na Flórida nesta semana como parte da investigação, rastreiem o dinheiro que financiou o assassinato.

Os mercenários colombianos que estão presos, disse ela, não vieram ao Haiti para "brincar de esconder", e ela quer saber quem pagou por tudo isso.

Moïse espera que o dinheiro leve até os oligarcas ricos do Haiti, cujas vidas foram perturbadas pelos ataques de seu marido a seus contratos lucrativos, disse ela.

Moïse disse que pensa seriamente em se candidatar à Presidência, depois de passar por mais cirurgias no braço ferido. Ela já fez duas, e os médicos agora pretendem implantar nervos de seus pés no braço, segundo disse. Ela talvez nunca recupere o uso do braço direito, e só consegue mover dois dedos, explicou.

"O presidente Jovenel tinha uma visão", disse ela. "E nós haitianos não vamos deixá-la morrer."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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