Haitianos obtêm direito de vir ao Brasil sem visto após denunciarem irregularidades para obter documento

Quase 200 familiares de imigrantes chegaram em voo fretado após decisão da Justiça

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São Paulo

Dois irmãos que perderam a mãe e ficaram sem ninguém para cuidar deles. Uma idosa cega e cadeirante que não consegue tratamento médico e não tem quem a ajude no dia a dia. Dezenas de crianças que estão longe da mãe, do pai ou de ambos há anos.

Todos eles são haitianos que têm parentes morando no Brasil. Esses imigrantes, a maioria vivendo no Rio Grande do Sul, tentam trazer os familiares para junto deles há meses, sem sucesso. Agora, estão entrando na Justiça brasileira para que eles possam vir ao país sem a necessidade de visto.

Nas ações judiciais, eles argumentam que o processo para a obtenção do documento —que deve ser pedido somente na embaixada brasileira em Porto Príncipe, capital haitiana— é cheio de obstáculos, incluindo denúncias de cobrança de propina por terceiros para entrar na representação diplomática.

Haitianos aguardam embarque em aeroporto de Porto Príncipe no voo fretado que os traria para o Brasil
Haitianos aguardam embarque em aeroporto de Porto Príncipe no voo fretado que os traria para o Brasil - Arquivo pessoal

No último dia 26, chegou a Porto Alegre um voo com 183 haitianos que conseguiram o direito de entrar no Brasil sem visto. Entre eles, 76 crianças, a maioria sem a companhia dos pais. A liberação da entrada do grupo se deu após uma ação coletiva aberta por uma entidade de imigrantes haitianos no Rio Grande do Sul, a Associação da Integração Social (Ainteso).

Na decisão liminar, a juíza Daniela Pertile Victoria afirma que a medida excepcional é necessária para garantir o direito à reunião familiar que está na Lei de Migração brasileira, de 2017.

Haitianos têm direito a um visto especial de acolhida humanitária no Brasil, em virtude de sua situação especialmente vulnerável desde o terremoto que devastou o país em 2010. Eles também podem trazer seus familiares, que precisam obter um visto de reunião familiar pelo mesmo caminho.

Em 2018, uma portaria regulamentou a obtenção desse visto, decidindo que ele só seria concedido pela embaixada em Porto Príncipe. Os agendamentos são organizados pela OIM (Organização Internacional para as Migrações, órgão ligado à ONU) e feitos pela internet.

Mas são frequentes os relatos de dificuldades para conseguir o documento, a começar pelo limite de 50 agendamentos por dia. “A demanda é significativamente superior a este número, de modo que as vagas abertas diariamente são rapidamente preenchidas”, informou à Folha a OIM.

A pandemia gerou uma fila de espera ainda mais longa, pois o atendimento para novas solicitações foi suspenso em março de 2020 e retomado apenas em junho de 2021.

Sem conseguir horário, muitos haitianos acabam contratando intermediários que cobram caro para fazer o agendamento pelos clientes —há relatos de que eles coloquem bots para fazer milhares de solicitações por minuto, vendendo as vagas obtidas.

“Tem pessoas pedindo propina para fazer o agendamento já há alguns anos. Eles cobram um absurdo e a maioria nem consegue, eles pegam o dinheiro e somem”, diz o haitiano James Derson Sene Charles, presidente da Ainteso. “Tem também outro grupo vendendo o próprio visto, a gente não sabe como eles conseguiram, não é direto na embaixada. Cobram US$ 2.000, US$ 3.000 [entre R$ 10.300 e R$15.400].”

A OIM afirma que o único valor cobrado para o agendamento é uma taxa de serviço de US$ 60 (R$ 308), paga por meio de uma guia gerada automaticamente pelo sistema, e que ninguém consegue alterar a ordem na fila. Segundo a organização, o processo não deve ser feito por intermediários e tentativas de fraudes devem ser denunciadas.

“Dada a alta demanda pelos vistos e tempo de espera, é possível que farsantes busquem enganar os migrantes e seus familiares, prometendo acelerar o agendamento. Isso sequer é possível, pois o sistema de agendamento é totalmente eletrônico e está sob controle de nossa sede em Genebra”, diz a nota.

Também há denúncias de pessoas cobrando até US$500 (R$ 2.570) para permitir a entrada na embaixada. O Ministério Público já abriu inquéritos a respeito, mas não informou à Folha o andamento dos casos.

À reportagem, o Itamaraty disse que a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe e a OIM têm atuado "para aperfeiçoar e agilizar o processamento de pedidos, a fim de atender à demanda crescente por vistos de acolhida humanitária e de reunião familiar, sem descuidar dos procedimentos para garantir o cumprimento das normas migratórias brasileiras e da segurança documental”.

A nota cita o agendamento online como forma de prevenir fraudes, ao evitar a transferência irregular de senhas a terceiros e ao ser gerenciado pela sede da OIM em Genebra.

O ministério não respondeu se recebeu denúncias de cobrança por terceiros para entrar no edifício nem se já houve investigação a respeito. Informou apenas que se dispõe a colaborar com a polícia haitiana, caso sejam investigadas “eventuais denúncias, fundamentadas em dados concretos”.

Voos fretados

Além da falta de vistos, a pandemia impôs outro obstáculo para a viagem do Haiti ao Brasil: a suspensão dos voos comerciais entre os dois países. Por causa disso, haitianos estão se juntando para fretar voos que trazem seus parentes. A Ainteso já trouxe cinco até agora.

O grupo que chegou no último dia 26 viajou em um Airbus A330 fretado da companhia Azul. O advogado que os representa na ação coletiva, Paulo Duarte, viajou na aeronave para garantir o embarque e a admissão deles no aeroporto de Porto Alegre.

Lá Fora

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Duarte já tinha representado oito haitianos em ações individuais parecidas e enfrentou entraves para que a Polícia Federal admitisse sua entrada sem o visto. “São situações excepcionais, por isso, mesmo com a liminar da Justiça, pode haver problemas. Eu desci primeiro para explicar o caso e garantir o cumprimento da decisão."

Segundo ele, foi emocionante acompanhar o reencontro das famílias na chegada. “Foi bonito. Eles celebraram, cantaram. Quando a gente faz uma ação judicial a gente junta nomes, dados e números, mas quando você vê que cada um tem um rosto aquilo te emociona.”

Outra advogada do Rio Grande do Sul afirma que está recebendo uma enxurrada de pedidos de haitianos com as mesmas dificuldades para se reunir com familiares. Débora Pinter, integrante da diretoria da rede Advogados Sem Fronteira, conseguiu uma liminar para um pai que queria trazer o filho e a filha menores de idade após a morte da mãe deles no Haiti.

“Ele ficou desesperado, pois os filhos não tinham parentes muito próximos que pudessem tomar conta deles, e as portarias interministeriais editadas pelo governo durante a pandemia impossibilitavam totalmente a viagem”, conta a advogada, que trabalhou no caso de forma voluntária e conseguiu, em maio, uma liminar autorizando a entrada sem visto das crianças.

Pinter, que atua nas cidades de Itajaí (SC) e Vacaria (RS), está atendendo mais de 200 haitianos na mesma situação. Eles também devem vir ao Brasil em um voo fretado, caso tenham respostas positivas ao pedido judicial.

“Nossos clientes são esposas, maridos, mas principalmente crianças que estão no Haiti. Tem pai que nem conhece o filho, porque veio para cá tentar uma vida melhor quando ele ainda estava na barriga, juntou o dinheiro para trazer a família, mas agora não consegue”, relata.

“Estão cansados de terem sido enganados por golpistas. Tem muita gente que ganha dinheiro em cima disso, pessoas que prometem que vão conseguir o visto, mas pegam o dinheiro e somem. Isso é o que mais tem.”

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