'Mônaco' do Brasil, cidade peruana de Islândia é habitada por israelitas, mas sonha em se tornar Veneza

Apesar de pertencer ao país vizinho, município acabou mais próximo do território brasileiro por causa de alteração no curso do leito do rio Javari

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Vista aérea da cidade de Islândia, no Peru, localizada as margens do rio Javari na fronteira com o Brasil

Vista aérea da cidade de Islândia, no Peru, localizada as margens do rio Javari na fronteira com o Brasil Lalo de Almeida/Folhapress

Islândia (Peru)

Trata-se de uma cidade peruana, mas está incrustada em território brasileiro. Chama-se Islândia, porém fica na Amazônia. Autointitula-se Veneza, enquanto boa parte dos habitantes são israelitas, os seguidores de uma religião que acredita que Jesus Cristo tenha reencarnado no Peru.

Localizada onde o rio Javari desemboca no poderoso Solimões (chamado de Amazonas por peruanos e colombianos), a ilha de Islândia foi demarcada como território peruano por uma comitiva binacional em meados de 1866. O limite havia sido acordado por um tratado em 1851, que definiu o Javari como a linha fronteiriça.

Meses mais tarde, quando tentava chegar às então desconhecidas nascentes do Javari, essa expedição foi surpreendida por guerreiros indígenas mayorunas. O chefe brasileiro, capitão-tenente João Soares Pinto, morreu a flechadas. Seu colega peruano, Manoel Rouaud y Paz Soldán, sobreviveu, mas teve a perna amputada. Por causa do difícil acesso, os dois países só concluiriam a demarcação em 1925.

A partir dos anos 1930, segundo moradores mais antigos, o processo erosivo natural do rio Javari fez com que o leito do rio mudasse seu curso. Foi quando Islândia "se mudou” da margem esquerda para a direita.

Hoje, Islândia está separada do Brasil apenas por um pequeno braço do Javari (“furo”, no termo local). Trata-se do antigo leito principal, hoje apelidado de Javarizinho e que seca durante o verão amazônico. Sem outras cidades peruanas próximas, sua posição geográfica evoca a situação de pequenas nações, como Mônaco ou o Vaticano.

Meninas israelitas assistem a um culto na igreja Missão Israelita do Novo Pacto Universal durante retiro dos fieis na zona rural de Benjamin Constant, no Brasil
Meninas israelitas assistem a um culto na igreja Missão Israelita do Novo Pacto Universal durante retiro dos fieis na zona rural de Benjamin Constant, no Brasil - Lalo de Almeida- Folhapress

No papel, portanto, o leito principal do Javari é totalmente peruano nesse trecho. Às vezes, há mal-estar. Em 2017, a prefeitura de Islândia tentou reaver uma carga de madeira apreendida pelo Ibama quando o barco passou diante da cidade, sem sucesso.

O Itamaraty mantém um pouco conhecido órgão técnico em Belém para monitorar as fronteiras na região Norte. Chama-se 1ª Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (PCDL). A reportagem pediu informações, via email e telefone, sobre a demarcação na região de Islândia, mas não houve resposta.

Na prática, Islândia, que ganhou esse nome por estar sobre uma ilha (“isla”, em espanhol), era considerado território brasileiro até a década de 1990, quando se resumia a um punhado de casas e vivia da borracha, da pesca e da madeira.

Em uma região em que a linha fronteiriça faz pouco sentido, o morador mais antigo de que se tem notícia foi um seringueiro brasileiro, conhecido apenas como seu Filó, já morto. Quem lembra da história é outra brasileira, Deucelina de Souza Córdova, 80. Ela se mudou para Islândia em 1984 junto com marido, pescador. Seus filhos nasceram e cresceram ali.

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Por anos, Córdova pensou que estava morando em seu país natal. “Desde que vim ao mundo, sempre ouvi dizer que aqui era Brasil. Eu me mudei pensando que era Brasil. De repente, virou Peru.”

A reportagem a encontrou em um domingo de junho, quando visitava a filha e o genro peruano em Islândia. Hoje, ela mora em Benjamin Constant (AM), na mesma margem do Javari. A distância de três quilômetros é percorrida em alguns minutos por meio de barcos pequenos, que cobram R$ 5 pela viagem.

A presença de peruanos só começou a crescer a partir de meados dos anos 1990, com a chegada dos seguidores do líder religioso Ezequiel Ataucusi (1918-2000), que afirmava ser Jesus Cristo reencarnado. Essa migração para a Amazônia teve apoio do governo nacional de Lima, que incentivava o povoamento das fronteiras remotas.

Na região, se dedicam à agricultura e ao comércio e são facilmente identificáveis pelas longas barbas e cabelo, no caso dos homens, e pelo véu comprido, entre as mulheres. Aos sábados, dia sagrado, vestem-se com roupas da época de Cristo. São popularmente conhecidos como os “cabeludos”.

Atualmente, o distrito de Yavari, do qual Islândia é a sede, abriga cerca de 15 mil pessoas. Desse total, cerca de 30% são da Missão Israelita do Novo Pacto Universal, o nome oficial da igreja fundada por Ataucusi e hoje liderada pelo seu filho.

Em Islândia propriamente dita, são cerca de 3.000 moradores. Além da peculiaridade geográfica, a cidade se distingue por ser a única da região totalmente erguida sobre uma várzea, como são chamadas as áreas alagadas durante parte do ano.

A solução encontrada foi construir passarelas de concreto, bem mais sólidas e seguras do que as precárias palafitas de madeira das cidades vizinhas brasileiras. Outra diferença é que motocicletas e carros estão proibidos de circular pelas passarelas. A maioria circula a pé, além de poucas bicicletas.

O silêncio e o ritmo bucólico passaram a atrair visitantes curiosos em conhecer a “Veneza do Yavari”, como Islândia se apresenta nos pacotes turísticos. O fluxo turístico na região tem a cidade colombiana de Leticia como polo —os voos quase diários a Bogotá facilitam a chegada de turistas europeus e americanos. Poucos se arriscam a conhecer o lado brasileiro, visto como violento, feio e desinteressante.

Em todos esses anos, a única tentativa mais efetiva para controlar a fronteira Brasil-Peru ocorreu no ano passado, durante o início da pandemia da Covid-19. Não deu certo, lembra o comerciante Gendrau Alván, dono de um restaurante turístico em Islândia.

“Fecharam a passagem, mas não tinha como, as pessoas desviavam”, diz. “Dependemos da carne vendida em Benjamin, o povo precisa comer. E somos uma família, não importa se do Brasil ou do Peru.”

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