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Morte de presidente mostra fracasso da ONU e do Brasil em fortalecer instituições no Haiti

Crime é mais um capítulo numa história de 200 anos de turbulência no país caribenho

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São Paulo

Em 2004, a ação de gangues no Haiti tornava o país caribenho ingovernável e ameaçava a integridade física do então presidente, Jean-Bertrand Aristide. Em 2021, a ação de gangues continua tornando o Haiti ingovernável, e a instabilidade no país caribenho terminou no assassinato do presidente Jovenel Moïse.

Entre os dois momentos históricos, houve um experimento da comunidade internacional com participação efetiva do Brasil que, como se vê agora, teve resultados práticos decepcionantes, para dizer o mínimo.

Durante mais de uma década, uma missão de paz da ONU procurou construir as instituições de um país que vive em turbulência praticamente ininterrupta desde sua independência, em 1804.

Jovenel Moise, presidente do Haiti que foi assassinado na madrugada desta quarta-feira (7)
Jovenel Moïse, presidente do Haiti que foi assassinado na madrugada desta quarta-feira (7) - Valerie Baeriswyl - 11.jan.20/Reuters

A inspiração que a “República Negra” gerou em movimentos populares na América Latina e na África, por ter sido formada por descendentes de escravos, dissipou-se em uma sucessão de golpes, massacres e conflitos armados ao longo dos séculos seguintes.

À pobreza material do Haiti somou-se a desfortuna da localização geográfica, em uma região suscetível a furacões e terremotos, que atrasaram ainda mais qualquer perspectiva de desenvolvimento.

Em 2004, com Aristide sitiado por grupos armados que controlavam a capital, Porto Príncipe, e outras cidades importantes, uma ação liderada por EUA e França “convidou” o presidente a renunciar, no que depois acabou denunciado por seus partidários como um golpe disfarçado.

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Entrou em cena logo em seguida uma robusta missão internacional, a Minustah, cujo componente militar foi oferecido e prontamente aceito pelo Brasil, na época vivendo o início da ambiciosa política externa dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Durante os 13 anos seguintes, excetuando-se breves intervalos, generais brasileiros comandaram um contingente internacional que chegou a reunir mais de 7.000 militares, vindos de 22 países.

Não foi uma aventura barata, mas que foi bancada por trazer retornos em termos de prestígio internacional e treinamento de tropas. A despesa para os cofres brasileiros é calculada em R$ 2,5 bilhões. No período, 37 mil brasileiros foram enviados ao país caribenho.

Ironicamente, muitos dos generais cujas carreiras se beneficiaram da missão, patrocinada sobretudo pelo governo Lula, vieram a ocupar cargos importantes sob Jair Bolsonaro.

Entre eles está o primeiro comandante da tropa, o general Augusto Heleno Ribeiro, atualmente ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência.

De imediato, Heleno recebeu como primeira missão dar combate aos grupos armados que controlavam o centro da capital. Se a tarefa foi relativamente bem-sucedida naquele momento, obrigando as gangues a um recuo, não faltaram indícios de exageros nas operações.

O episódio mais controverso, que teve o comando direto do general brasileiro, foi a Operação Punho de Aço, contra o chefe de gangue Emmanuel “Dread” Wilmer, em 6 de julho de 2005. O ataque na favela de Cité Soleil, com um contingente de 440 militares, cumpriu o objetivo de eliminar Wilmer e comparsas, mas imediatamente surgiram acusações de mortes de civis. Os números citados chegavam a até 60 vítimas.

Investigações da ONU não apontaram responsabilidade dos militares, no entanto, o que apenas reforçou a imagem dos brasileiros como invasores fazendo o serviço sujo impunemente em nome dos americanos.

O fato é que a ação dura da força de ocupação da ONU deu algum semblante de normalidade ao país pelos anos seguintes. Em 2010, o devastador terremoto que deixou até 200 mil mortos, seguido por uma epidemia de cólera, levou a um aumento ainda maior da presença internacional, que se manteve mais ou menos inalterada até 2017.

Desde a saída da ONU, no entanto, o Haiti retomou seu ciclo de instabilidade política e institucional, o que mostra que a comunidade internacional não teve êxito em seu principal objetivo, o de firmar as bases de uma democracia estável.

O Haiti atual, em alguns sentidos, parece pior do que o turbulento período das ditaduras de François Duvalier (Papa Doc) e de seu filho Jean-Claude (Baby Doc), que governaram o país durante quase três décadas, até os anos 1980.

Naquele período, a violência estava concentrada no Estado, a cargo de grupos paramilitares que executavam opositores. O Haiti de agora não é menos brutal, mas mais imprevisível, com focos de ameaça surgindo de diversas fontes.

O esforço de estabilizar o país parece mais difícil agora do que há 17 anos, quando imaginou-se que uma tropa de capacetes azuis sob o comando do Brasil bastaria para resolver fragilidades com dois séculos de história.

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