Descrição de chapéu Governo Biden

Prática da 'porta giratória', encarnada em Rumsfeld, é desafio difícil de expurgar nos EUA

Embora legal, modelo tem comprometido governança americana ao sobrepor interesses pessoais e de grandes corporações aos desafios nacionais

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Washington

Antes de assumir a Secretaria de Defesa dos EUA pela segunda vez, em janeiro de 2001, Donald Rumsfeld fez uma revelação controversa. Admitiu que tinha “um grande número de investimentos e atividades” que seriam definidos como conflitos de interesse caso mantidos enquanto trabalhasse para a Casa Branca.

Durante mais de duas décadas, Rumsfeld mergulhou em negócios da iniciativa privada em áreas sensíveis para o governo americano, logo após servir como chefe do Pentágono de Gerald Ford, de 1975 a 1977.

Às vésperas de ocupar outra vez o posto, sob George W. Bush, Rumsfeld tinha acumulado fortuna avaliada em US$ 210 milhões —o salário de um secretário do primeiro escalão chega hoje a US$ 221,4 mil por ano— e foi obrigado a abrir mão de uma cartela de fundos e sociedades para voltar ao setor público.

Da esq. para a dir., o então secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, o presidente George W. Bush e o vice Dick Cheney durante cerimônia no Pentágono, em Washington
Da esq. para a dir., o então secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, o presidente George W. Bush e o vice Dick Cheney durante cerimônia no Pentágono, em Washington - Tim Sloan - 15.dez.06/AFP

Morto na semana passada, aos 88 anos, em razão de um mieloma múltiplo, Rumsfeld é reflexo do fenômeno conhecido como porta giratória, quando pessoas alternam atuação entre cargos nos setores público e privado. Historicamente comum nos EUA, a prática não é considerada ilegal, mas tem comprometido a governança americana ao sobrepor interesses pessoais e de grandes corporações aos desafios nacionais, tanto em gestões democratas como republicanas.

Como todos os funcionários submetidos à Casa Branca, Rumsfeld precisava obedecer regras do Comitê de Ética do Governo e, antes de sua segunda posse como secretário, concluiu um acordo com o colegiado, que estabeleceu um cronograma para que ele se desfizesse de investimentos relacionados a empresas que poderiam fazer negócios com o governo. Quase metade do dinheiro que ele havia acumulado durante a atuação no setor privado era ligada a firmas que investiam em saúde, energia, internet e biotecnologia.

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Rumsfeld foi responsável por comandar as estratégias dos EUA durante a Guerra Fria e, décadas depois, dos conflitos no Afeganistão e no Iraque. Em sua segunda fase no cargo, cercou-se de pessoas que, assim como ele, tinham passagem pelo setor privado e viu sua gestão ganhar holofotes também por um dos mais emblemáticos casos de porta giratória nos EUA.

O protagonista da vez era Dick Cheney, afilhado político de Rumsfeld e então vice de Bush. Principal arquiteto da Guerra do Iraque, Cheney foi presidente e diretor-executivo da Halliburton, de 1995 a 2000, menos de um ano antes de se tornar vice-presidente.

Empresa do setor petrolífero, a Halliburton tinha interesses óbvios no Oriente Médio, e uma de suas subsidiárias, a KBR (Kellog Brown and Root), lucrou sozinha cerca de US$ 40 bilhões em contratos com o governo americano durante o conflito no Iraque, que custou aos EUA US$ 700 bilhões e 4.400 vidas.

Antes de ser vice e um dos grandes defensores da guerra, Cheney foi deputado e trabalhou na Casa Branca sob Ford e Richard Nixon. Ao contratar pessoas que passaram pelo alto escalão do establishment americano, empresas querem experiência em formulação de políticas públicas e, mais do que isso, tirar proveito dos contatos que elas têm e da habilidade em serem sempre atendidas no governo.

O movimento da porta giratória ganhou tração a partir da gestão de Ronald Reagan (1981-1989) e da cultura instituída pelo republicano de que o que é bom para as empresas é bom para o país. Esse pensamento fez com que muitos servidores atuassem guiados pelas demandas do setor privado e estimulou a criação de projetos como o RDP (Revolving Door Project), em Washington, que acompanha os nomeados do Executivo para garantir que eles usem o cargo para servir ao interesse público.

Diretor de pesquisa do RDP, Max Moran diz que a porta giratória transforma o governo em “uma espécie de clube gigante”. “Ou você está no clube, lucrando imensamente com normas elaboradas para seu benefício, ou está fora dele, e, neste caso, sob um governo que, na melhor das hipóteses, não responde às suas necessidades ou, na pior, prejudica você. É fatal para um país que quer se chamar de democracia.”

Moran explica que uma das razões que conferem certa legitimidade à porta giratória é a ideia fantasiosa de que contratar empresários como reguladores ou para outros postos-chave é algo positivo. Na verdade, a experiência mostra que grande parte deles apenas cria regras para favorecer os setores para os quais trabalharam um dia. É por isso que, em um país onde o lobby é legalizado e a cultura de guerra e o complexo industrial-militar são tão marcantes, o setor de segurança e defesa —que inclui o Pentágono de Rumsfeld— tornou-se a grande recorrência da porta giratória.

“Esse setor depende diretamente dos gastos militares para se manter à tona, por isso tem incentivo mais direto para ter o sistema jogando a seu favor, inclusive com a nomeação para cargos”, diz Moran.

Na história recente, os exemplos mais gritantes de porta giratória avançaram sob o governo de Donald Trump, abertamente favorável ao estreitamento dos laços entre setor público e privado. Ele nomeou como secretário do Tesouro, por exemplo, Steven Mnuchin, que era administrador de fundos de Wall Street e sempre atuou em favor dos grandes empresários. Andrew Wheeler era um lobista da indústria do carvão e se tornou o diretor da Agência de Proteção Ambiental de Trump, enquanto Betsy DeVos, cuja família é ligada ao setor de empréstimos estudantis, foi secretária de Educação do republicano.

Do lado democrata, o discurso é mais forte que a prática. Apesar de ter prometido ao menos diminuir a influência dos lobistas na Casa Branca, Barack Obama contratou dezenas deles durante seus dois mandatos. Joe Biden, por sua vez, é o presidente americano que menos usou de portas giratórias desde Reagan, mas ainda tem ex-lobistas e ex-empresários ocupando postos-chave, como as secretarias de Estado e de Defesa, em um reflexo do desafio de expurgar a prática no país.

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