Presidente do Haiti é assassinado a tiros em ataque à sua residência

Jovenel Moïse, 53, foi morto durante a madrugada; primeira-dama também foi baleada, está em situação crítica e foi transferida a Miami

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BAURU (SP)

O presidente do Haiti, Jovenel Moïse, 53, foi morto a tiros em sua residência privada durante a madrugada desta quarta (7), informou por meio de um comunicado o primeiro-ministro interino, Claude Joseph, que classificou o caso de "ato odioso, desumano e bárbaro".

Segundo o premiê, a esposa de Moïse, Martine, 47, também foi baleada e está recebendo cuidados médicos. O embaixador haitiano nos EUA, Bocchit Edmond, disse no início da tarde que a primeira-dama está em estado crítico e que seria transferida para ser atendida em Miami, o que ocorreu no início da noite.

Também na noite desta quarta, o vice-ministro das Comunicações, Frantz Exantus, publicou uma mensagem no Twitter segundo a qual suspeitos de matar o presidente foram detidos. Mais cedo, sem dar detalhes, o premiê afirmou que parte dos invasores falava espanhol, o que indicaria que eles não são haitianos —os idiomas oficiais do país são o francês e o crioulo.

"Todas as medidas estão sendo tomadas para garantir a continuidade do Estado e para proteger a nação. A democracia e a República vencerão", disse o primeiro-ministro, depois de pedir calma à população e dizer que a situação de segurança do país está sob controle da polícia e das Forças Armadas.

O presidente do Haiti, Jovenel Moïse, durante entrevista coletiva em Porto Príncipe
O presidente do Haiti, Jovenel Moïse, durante entrevista coletiva em Porto Príncipe - Chandan Khanna - 7.jan.20/AFP

Na segunda-feira (5), Moïse havia nomeado um novo premiê, o sétimo em quatro anos. Ariel Henry deveria substituir Joseph nesta quarta, mas, devido às circunstâncias, a troca não aconteceu. Em entrevista ao jornal americano The New York Times, o interino afirmou estar no comando do Haiti neste momento —o presidente da Suprema Corte do país seria o nome a preencher a lacuna, mas o último detentor do cargo, René Sylvestre, morreu no mês passado, vítima da Covid-19.

Após uma reunião de gabinete com outros membros do governo, o primeiro-ministro declarou estado de sítio, o que confere ainda mais poderes ao Executivo no país em que o Legislativo teve suas funções praticamente anuladas por Moïse. O líder autoritário governava por meio de decretos desde o ano passado, após suspender dois terços do Senado, toda a Câmara dos Deputados e todos os prefeitos.

O país vive agora um impasse em relação à sucessão de Moïse. Em entrevista à CNN americana, Jean Wilner Morin, presidente da associação nacional de juízes haitianos, explicou que, para Joseph seguir formalmente no comando do país, ele precisaria ser aprovado em uma votação no Parlamento. Sem o Legislativo atuante, porém, o atual premiê não poderia ocupar a Presidência.

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Joseph também fez um apelo à comunidade internacional para que o assassinato do presidente seja investigado e à Organização das Nações Unidas (ONU) para que uma reunião do Conselho de Segurança seja convocada. De acordo com informações da agência de notícias AFP, o órgão se reunirá, a pedido dos Estados Unidos e do México, em caráter de urgência nesta quinta (8) para discutir a situação haitiana. O Brasil faz parte do conselho, como membro rotativo.

A entidade, responsável por monitorar a paz mundial, divulgou um comunicado na semana passada em que expressou preocupação com as condições políticas, de segurança e humanitárias no Haiti e enfatizou a responsabilidade do governo haitiano de lidar com a situação.

O ataque a Moïse ocorreu em meio a uma onda crescente de violência ligada à crise política do país. Com o Haiti profundamente polarizado e enfrentando uma crise humanitária e escassez de alimentos, há temores de uma desordem generalizada.

Nesta madrugada, houve relatos de tiros em toda a capital, Porto Príncipe, e, no começo da manhã, forças de segurança montaram um sistema para controlar a circulação de pessoas nas ruas. Segundo a agência de notícias Reuters, o aeroporto internacional da cidade foi fechado, e a vizinha República Dominicana ordenou o bloqueio da fronteira que divide com o país.

O embaixador brasileiro em Porto Príncipe, Marcelo Baumbach, disse à Folha que a polícia controla a cidade, e a população evita sair de casa, mas na região central, onde está o palácio do governo, alguns grupos já começam a se reunir para manifestações. "Espera-se um clima tenso, embora o país esteja neste momento sob controle", disse o diplomata.

Porto Príncipe vinha sofrendo com um aumento da violência devido ao confronto entre gangues e a polícia pelo controle das ruas. No mês passado, o líder de uma espécie de coalizão de nove facções conhecida como G9 anunciou que estava lançando um movimento revolucionário contra elites políticas e empresariais do país, o que deixou as autoridades em estado de alerta.

O embaixador haitiano nos EUA, Bocchit Edmond, no entanto, apontou para uma interferência externa. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, disse que os assassinos que invadiram a casa de Moïse alegavam ser membros da agência ​americana antidrogas (DEA, na sigla em inglês). "Foi um ataque bem orquestrado. Eles [os agressores] diziam às pessoas que vieram como parte de uma operação da DEA."

Mais tarde, em entrevista coletiva, Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, responsável pela diplomacia americana, disse que as acusações são "absolutamente falsas".

Para o jornalista haitiano Gotson Pierre, diretor de Redação do Alterpresse, o caso "deve ser lido mais como um tema de segurança do que político", vinculado a uma falta de pulso do governo haitiano em conter a disseminação descontrolada da formação de milícias paramilitares no país.

"A degradação desta situação só tem aumentado. Há vários setores da capital que estão fora do controle do governo, com cidadãos que não podem ir de um lugar a outro. Qualquer um sabe que pode ser sequestrado, não só ricos ou estrangeiros. As gangues vão atrás de qualquer um que possa ser roubado."

Neste contexto, diz o jornalista, Moïse teria em alguns momentos feito pactos com facções, para poder atuar em uma ou outra região, "mas logo tinha de se aliar a outra e trair a primeira, e isso foi aumentando a tensão e a sensação da população de que o governo não tinha controle nem oferecia segurança".

Para Denilde Holzhacker, coordenadora do núcleo de estudos das Américas da ESPM, o assassinato de Moïse torna ainda mais complexa a equação dos conflitos internos no país, já que grupos que apoiavam o presidente podem agir para ampliar as tensões. Além disso, segundo a especialista, o país caribenho deve se tornar ainda mais dependente da comunidade internacional.

"O Haiti já vinha de um histórico de instabilidade política, de golpes, de ditaduras, e não conseguiu estabelecer de fato uma situação de defesa de princípios democráticos nem de resultados que possam trazer benefícios sociais e econômicos à população", analisa.

O Brasil teve um papel de liderança na missão humanitária da ONU. Durante 13 anos, a partir de 2004, generais brasileiros comandaram um contingente internacional que chegou a reunir mais de 7.000 militares, vindos de 22 países. A missão trouxe prestígio ao Brasil, mas, na prática, foi pouco eficiente em fortalecer as instituições haitianas.

A situação, que já era delicada, agrava-se no contexto de pandemia. Até hoje, o Haiti não iniciou sua campanha de vacinação contra a Covid-19, já que ainda não dispõe de imunizantes —outros quatro países encontram-se também nessa situação. Em comunicado emitido poucas horas após o assassinato de Moïse, a diretora da Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), Carissa Etienne, disse temer que o episódio retarde ainda mais o combate à crise sanitária.

De acordo com o Banco Mundial, o Haiti é o país mais pobre das Américas e figura entre os mais pobres do mundo. O índice de pobreza beira os 60% (a última estimativa oficial, de 2012, foi de 58,5%). No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que avalia o desempenho dos Estados-membros da ONU com base no acesso a educação, renda e saúde, o país ocupa a 170ª entre 189 posições.

Além disso, mais de 96% da população está vulnerável a desastres naturais. O país nunca conseguiu se recuperar das consequências do terremoto que o devastou em 2010, deixando cerca de 200 mil mortos e causando prejuízos equivalentes a 120% do total do PIB (Produto Interno Bruto) daquele ano. O furacão Matthew, em 2016, também causou mortes aos milhares e danos estimados em 32% do PIB de 2015.

O aumento da pobreza e da instabilidade política também serviram de gatilho para a violência nas ruas, que a ONU definiu como "sem precedentes". ​Moïse vinha enfrentando protestos desde que assumiu a Presidência, em 2017, com a oposição acusando-o de autoritarismo e de tentar instalar uma ditadura ao prolongar seu mandato —acusações que ele negava. Em fevereiro, mais de 20 pessoas, entre os quais um juiz da Suprema Corte do Haiti e um dos inspetores-gerais da polícia, foram presas sob a acusação de envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado e em uma conspiração para assassinar Moïse.

O caso acirrou a crise política do país, que tinha no centro da disputa uma discussão sobre o término do mandato de Moïse. Ele foi eleito em 2015 e deveria ter tomado posse em 7 de fevereiro de 2016 para um mandato de cinco anos. Em meio a acusações de fraudes, porém, o pleito foi anulado e teve que ser refeito no ano seguinte. Durante esse período, o país foi comandado por um governo interino.

Moïse saiu vencedor na nova votação e assumiu o comando do Haiti em 7 de fevereiro de 2017. Como o mandato presidencial no país é de cinco anos, ele alegava que deveria permanecer no cargo até fevereiro de 2022, portanto —uma alegação apoiada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

A oposição, porém, considerava que o período de um ano de governo interino deveria ser incluído na contagem, mesmo que Moïse não fizesse parte dele. O Superior Tribunal de Justiça do Haiti concordava com essa visão, segundo a qual o mandato atual deveria ter terminado em 7 de fevereiro deste ano.

O plano da oposição para trocar o comando do país exigia que membros da sociedade civil e líderes políticos escolhessem um novo presidente entre os juízes da Suprema Corte, em vez de esperar pelas eleições gerais marcadas para setembro. Moïse, por sua vez, não aceitava deixar o cargo. “Eu não sou um ditador. Meu mandato termina em 7 de fevereiro de 2022", disse, durante um discurso em Porto Príncipe, horas depois de milhares de haitianos irem às ruas pedindo sua saída da Presidência.

Colaborou Sylvia Colombo; Com Reuters

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